A questão agrária e o campesinato na revolução russa de 1917

12/06/2017
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Exposição no Seminário Construção histórica da pedagogia socialista. O legado

da revolução russa de 1917 e os desafios atuais”

 

 

  1. Elementos históricos e conceituais

 

Para se compreender a questão agrária e o campesinato na revolução russa de 1917, levando-se em conta os principais debates da época e as lições políticas que se poderá inferir para o momento atual, será minimamente necessário que se trate de alguns episódios da transição do regime de servidão dos camponeses, iniciado formalmente em 1649, até o período das socializações da terra que se efetuou na Rússia, a partir da revolução popular de 1917. E, depois, alcançar os nossos dias.

 

É o seguinte o conceito de campesinato que utilizo como referência, considerando-se as formações econômicas e sociais sob a dominação e hegemonia do modo de produção capitalista: “Entendo por camponesas aquelas famílias que, tendo acesso a terra e aos recursos naturais que esta suporta, resolvem seus problemas reprodutivos a partir da produção rural--- extrativa, agrícola e a não agrícola --- desenvolvida de tal modo que não se diferencia o universo dos que decidem sobre a alocação do trabalho, dos que sobrevivem com o resultado dessa alocação.” i

 

Neste texto, onde se comenta a presença camponesa na revolução russa de 1917, o conceito de campesinato se expressa numa transição complexa que vai se alterando desde a formal emancipação camponesa da servidão feudal em 1861 até a sua presença, ao menos parcial na complexidade da imensidão social e étnica russa, como sujeito social em construção (fugas e revoltas camponesas) na década de 20 do século XIX.

 

Ademais, será oportuno, que ao se centrar as considerações sobre o campesinato russo dessa época se recue um pouco mais no tempo, ao menos até o século XVII, no sentido de se ressaltar os antecedentes da transição feudalismo-capitalismo na Rússia para se destacar a servidão dos camponeses e a sua superação.

 

Deve-se ressaltar desde logo, conforme Leninii, que na Rússia de 1905 “(...) mais da metade das propriedades (6.200.000 em 12.300.00) possuem até oito deciatinas (medida agrária russa, 1067 m2) cada uma, isto é, uma quantidade que, em geral e em média, é absolutamente insuficiente para sustentar uma família (...). Só podem ser consideradas propriedades de camponeses ricos as que têm mais de 30 deciatinas; seu número não vai além de 600.000, ou seja, a vigésima parte do total (...). Dez milhões de famílias camponesas possuem 73 milhões de deciatinas de terras. Vinte e oito mil senhores de terras --- uns nobres, outros adventícios, saídos dos kulaks --- possuem 62 milhões de deciatinas. Este é o quadro fundamental no qual se desenvolve a luta camponesa pela terra (...)”.

 

Para Trotskyiii “(...) Se a questão agrária, herança da barbárie, da antiga história russa, tivesse sido resolvida pela burguesia, caso pudesse ter recebido uma solução, o proletariado russo não teria jamais conseguido subir ao poder em 1917. Para que o Estado Soviético fosse fundado foi necessária a aproximação e a penetração recíprocas de dois fatores de natureza histórica inteiramente diferentes: uma guerra de camponeses, movimento característico da aurora do desenvolvimento burguês; e uma insurreição proletária, isto é, um movimento que marca o ocaso da sociedade burguesa. É isto a essência do ano 1917.”

 

Considero que o campesinato, ao menos no Brasil contemporâneo e na sua mais ampla diversidade, vivencia uma contradição que se expressa nos seguintes termos: sua possibilidade efetiva de progresso e desenvolvimento na sociedade capitalista se encontra na sua própria negação no sentido de que os valores e práticas dominantes a conduzem para se afirmar como empresa capitalista ou no seu contrário, ou seja, tornar os membros da família camponesa em assalariados ou parcela deles em burgueses. A hipótese da garantia da reprodução social do campesinato fica, dessa maneira, comprometida.

 

  1. Regime de Servidão na Rússia

 

A nobreza estimulava os camponeses livres (até final do sec. XVI) para aceitarem uma servidão por dívidas (empréstimos efetuados). Mas, esse sistema não poderia subsistir enquanto houvesse fronteira aberta. Camponês era nômade, migrante...

 

O regime de servidão foi formalmente instituído na Rússia no século XVII (1649) pelo czar Aleixo, após casos de fuga dos camponeses pobres (mujiques) dos feudos onde estavam submetidos à servidão. Esse código legal de 1649 restringiu a mobilidade dos camponeses para forçá-los a se submeterem à autoridade do Estado. Havia, então, duas grandes categorias de servos: servos pertencentes a membro da nobreza (fidalgos) e os pertencentes ao Estadoiv. Os camponeses que viviam nas terras do Estado, no entanto, não eram considerados servos. Eles foram organizados em comunas da aldeia (Mir), que foram responsáveis pelos impostos e outras obrigações.

“(...) As formas de organização comunais não excluem os esforços individuais, apenas esforçam-se para mantê-los sob controle (...). O Estado, ao dar seu apoio à permanência da comuna, como unidade mestra da estrutura da organização rural, transformou também cada comuna num campo de batalha entre tendências sociais mutuamente dependentes e, não obstante, divergentes.” v

Havia servos pertencentes a membro da nobreza (os denominados fidalgos) e os pertencentes ao Estado. Os servos pertencentes às famílias da nobreza --- os mujiques ou camponeses russos, eram considerados como um tipo de ‘peão subordinado por dívidas’. Eram nômades que trabalhavam a terra para a nobreza russa (e a igreja Ortodoxa), em troca de empréstimos (Kabala) ou outra forma de auxílio, como insumos em geral, em prazos fixos por 3 a 5 anos ou de 10 a 20 anos (Kabala kholop)vi.

Os camponeses passavam de 3 a 5 dias por semana trabalhando nas terras da nobreza.

Essa lei (servidão) forçou os camponeses russos a se manterem nas terras, sem as poder possuir. Os donos das terras, sobretudo nobres, podiam vender as terras juntamente com os servos que nela trabalhavam. Os nobres possuíam mais de 50% das terras aráveis. Os camponeses no máximo de 6,75 a 8,10 acres ou, mais ou menos, 2 has.vii

Como os servos, no entanto, os camponeses do Estado foram anexados à terra que cultivavam, ao se exigir que a maioria dos russos não mudasse de domicílio.

  1. Fugas e revoltas

 

O regime de servidão provocou inúmeras revoltas dos servos camponeses. Nos anos 1650 e 1660, o número de fugas dos camponeses aumentou drasticamente (formas diversas de rebelião). Porém, essas revoltas foram derrotadas pelas tropas czaristas. Em 1658 a fuga foi considerada contravenção penal.viii

 

Entre 1773 e 1775, houve diversas revoltas dos camponeses em algumas regiões (nos Urais e na zona do Volga). Em decorrência dessas revoltas a imperatriz Catarina II da Rússia tornou as leis ainda mais favoráveis aos nobres, que podiam agora deportar os servos que causassem problemas, podendo igualmente separar famílias.

 

Por outro lado, passou a ser possível que os servos comprassem a sua liberdade, pagando aos senhores feudais o preço estabelecido por eles. Dessa maneira os servos poderiam adquirir a liberdade, então relativa, porque não tinham acesso à terra. No entanto, caíram numa situação em que a libertação plena só foi outorgada aos camponeses mediante concessões adicionais, tais como, se possuíssem fundos suficientes os camponeses podiam comprar sua liberdade imediatamente. Para tanto o Estado ofereceria 80% da soma necessária (o proprietário devolveria o montante do crédito no decorrer de 49 anos à taxa de 6% de juros anuais, e o camponês os 20% restante). Mas esse processo não deu certo. Os camponeses não tinham renda suficiente para pagar os 20% restantes.

 

Em meados do séc. XVIII os servos compunham a maior parte da população; de 1762 a 1766 eram 52,4% da população rural total de 14,5 milhões de habitantes da Grande Rússia e Sibéria. Em fins do século dezoito, a população total de servos do sexo masculino chegava a 10,9 milhões, cifra que permaneceu estacionária até a emancipação dos servos em 1861 (...)ix

 

Houve, até o final do sec. XVIII, 300 insurreições em 32 províncias. No período entre 1826 e 1861 (35 anos) houve 1.186 sublevações camponesas, com a média de 34 por ano.

  1. Fim formal da servidão (1861)


 

Em 19 de fevereiro de 1861 (03 de março de 1861, no calendário gregoriano ou ocidental) Alexandre II decreta o fim do sistema de servidão. Foram libertados, ao todo 22,5 milhões de camponeses servos, embora a propriedade dos latifúndios tenha sido preservada.

A emancipação dos servos em 1861 tinha como princípio dominante o temor expresso por Alexandre II: “É melhor a autoridade libertar os camponeses, do que esperar que eles mesmos se libertem por meio de insurreições.” Nesse ano foi estabelecida a “emancipação relativa camponesa”. Foram libertados 2,4 milhões de camponeses. Até 1880, 65% das 6.380 comunas dos 66 distritos espalhados pela Rússia europeia não haviam realizado a redistribuição de suas terras. Mesmo que oficialmente o regime feudal tivesse sido eliminado, as mentalidades não mudaram rapidamente. A propriedade das terras permanecerem com seus antigos donos.

Durante a vigência do feudalismo os camponeses promoveram inúmeras fugas e revoltas. Entre 1775 e o final do sec. XVIII houve 300 insurreições em 32 províncias. No período entre 1826 e 1861 (35 anos) houve 1.186 sublevações camponesas, com média de 34 por ano.

Houve na Rússia, depois de 1861, um movimento de abandono dos campos em direção às cidades e muitos passaram a nelas viver (Moscou ganhou o apelido de "a grande aldeia").

Apesar de libertado da servidão ao nobre o Mujique permanecia vinculado às exigências da comuna da aldeia, o Mir. “(...) O Mir, porém, era algo mais que uma forma de organização social. Desempenhava o papel de uma espécie de superego coletivo, o qual o investia de uma aura verdadeiramente religiosa. O termo mir significa, a um tempo, comuna e universo...”x

Em 1897 a Rússia já contava com 125,6 milhões de indivíduos. Tinha a terceira maior população do mundo na época.

 

Em 1906 o governo elaborou um plano de reforma agrária destinado a desmantelar a estrutura comunal tradicional. Stolypin, um monarquista, foi primeiro-ministro e o responsável por diversas reformas políticas entre as quais o plano de reforma agrária. Temia o igualitarismo comunal e defendia o campesinato médio.

A reforma de Stolypin tinha por objetivo a criação de um estrato de agricultores capitalistas acomodados que representara uma nova base nacional de crescimento econômico e conservadorismo político. Para conseguir este propósito era necessário superar o obstáculo constituído pela comuna redistributiva e suas práticas de repartições da terra. A propriedade familiar e este tipo de redistribuição teriam que ceder passagem à propriedade privada e à herança vinculada, um fator importante que contribui para o processo de acumulação capitalista”.xi

A reforma agrária conseguiu a redução dos pobres da aldeia. Ao todo três milhões de camponeses abandonaram as comunas. Quase um milhão de camponeses só adquiriram os títulos de suas terras depois de deixarem a aldeia. Parcelas dos camponeses venderam suas terras para se empregarem na indústria. No entanto, permaneceram seis milhões de camponeses nas comunas com dificuldades de se tornarem sitiantes independentes.

 

“(...) Agosto-setembro-outubro de 1917: em quase todas as partes, na imensa planície russa, as massas camponesas passam à ação, tomam as terras dos senhores, proíbem pela força os trabalho dirigidos pelos proprietários de terras, realizam, de acordo com seus interesses e vontade, os trabalhos de plantio e de semeadura, fazem por conta o corte de lenha nas florestas dos senhores. O movimento de massa camponês decide resolver à sua maneira a ‘questão agrária’. É a divisão na marra”.xii

 

De 1861 a 1917 passaram 56 anos. O que aconteceu, em relação ao tema deste texto, nesse período:

  • a emancipação formal dos servos (1861);

  • a tentativa de revolução em 1905 (massacre popular pelas tropas do Czar em face das reivindicações populares devido a fome do povo);

  • a guerra russo-japonesa em que os russos saem derrotados;

  • aumenta o número de greves, em especial desde 1905;

  • amplia-se a formação de partidos operários;

  • em março de 1917 o Czar é deposto;

  • retorno dos exilados, inclusive Lenin;

  • a nova propriedade rural rompeu o laço vertical que o prendia ao senhor, mas manteve-se subordinada às exigências da comuna da aldeia --- o Mir;

  • o fortalecimento e mudança de forma dos ‘sovietes’ (a forma soviete de organização reapareceu, pela primeira, vez em áreas industriais, em seguida, entre soldados, marinheiros e camponeses).

 

É oportuno ressaltar, ademais, que uma das principais reivindicações dos camponeses durante a revolução de 1917 foi demanda de distribuição de terras.

 

  1. As adversidades do momento histórico contemporâneo

 

Vivencia-se um contexto histórico adverso e marcado pela logica neoliberal. Nela, os camponeses enfrentam uma situação econômica, política e social que lhes nega ou dificulta a sua reprodução social, mesmo que as políticas públicas favoráveis à denominada agricultura familiar (sic) tendam para uma seletividade em que a maior parte das unidades de produção camponesas se transforme em empresas capitalistas. E, nessa perspectiva, essas políticas públicas ainda pressupõem implicitamente que os demais camponeses tendam ou para a proletarização ou a lutarem para depender cronicamente das políticas públicas compensatórias num processo para evitar ou retardar a sua proletarização.

 

A ideologia dominante insiste que a racionalidade capitalista é a única possível. As grandes empresas capitalistas multinacionais que vendem insumos e compram produtos do campo querem pensar pelos camponeses, querem decidir por eles e por suas famílias; querem separar os camponeses, os produtores diretos, das suas condições de produção; querem dizer o que devem plantar, criar e como realizar essas atividades; querem impor as suas tecnologias e seu modo de gerenciar as terras camponesas; querem lhes ensinar como produzir. De fato anseiam que os camponeses adotem o seu modo de viver e de produzir, que esqueçam como é ser feliz à sua maneira e que pensem apenas no lucro.

 

Tudo isso porque a burguesia dominante não suporta nenhuma iniciativa que evidencie a diversidade nos modos de produzir e de viver na formação econômica e social brasileira. No fundo, deseja mesmo é subtrair as terras dos camponeses, obrigando-os a vendê-las por preços vis e os impulsionando a migrar para as cidades. O que aspiram, ademais, é ter força de trabalho barata para fazer funcionar os seus negócios e/ou explorar os camponeses de várias outras formas e ainda dizer que lhes fazem favores.xiii

 

Isso se dá porque predomina no campo (e nas cidades) a razão neoliberal, esta caracterizada pelos seguintes traços, segundo Dardot e Lavalxiv:

 

  1. (...) o mercado se apresenta não como um dado natural, mas como realidade construída que requer, enquanto tal, a intervenção ativa do Estado assim como a implantação de um sistema de direito específico...;

  2. A essência da ordem do mercado reside não na troca, mas na concorrência, definida ela mesma como relação de desigualdade entre diferentes unidades de produção ou ‘empresas’;

  3. (...) o Estado não é simplesmente o guardião vigilante dessa situação institucional, ele mesmo é submetido, na sua própria ação, à norma de concorrência;

  4. A exigência de uma universalização da norma de concorrência excede amplamente as fronteiras do Estado, ela alcança diretamente até os indivíduos considerados nas relações que eles mantem com eles mesmos.

 

Em suma, “(...) o modo de governamentalidade própria ao neoliberalismo recobre o ‘conjunto de técnicas de governo que excedem a estrita ação do Estado e concerta a maneira na qual os sujeitos se conduzem eles mesmos’... Trata-se de acentuar a que ponto esta extensão, apagando a separação entre esfera privada e esfera pública, erode até os fundamentos da democracia liberal ela própria...”xv

 

  1. Sugestões políticas para o momento atual

 

As observações que até aqui foram realizadas sobre o campesinato no período que precedeu a revolução Russa de 1917, assim como durante essa revolução, e as sugestões políticas que se exporá para o momento atual levaram em consideração contextos sociais bastante diversos e, inclusive, classes lutas sociais muito distintas entre si, apesar de se denominarem, amplo senso, campesinatos e burguesias. Isso significa, ademais, que as correlações de forças dos campesinatos com relação às classes dominantes foram muito distintas (mesmo que se considerasse apenas as frações da burguesia).

 

Foram várias, também, as formas de lutas dos camponeses. Elas são particulares devido aos contextos históricos e sociais onde se verificaram, mas registraram causas muito similares entre si.

 

Desde sempre os camponeses foram considerados como ‘subalternos’. Seja durante o feudalismo como servos da gleba seja na atualidade, na formação econômica e social presente no Brasil, onde nos mais diferentes níveis de desenvolvimento das forças produtivas sob a hegemonia e dominação do modo de produção capitalista os camponeses, mesmo com acesso à terra, ainda tem sido considerados como povos sem destinos.

 

No modo de produção feudal a perspectiva dos camponeses após a sua emancipação como servos (1861) era a de permanecer prestando serviços nas terras dos nobres ou comprar a sua libertação devido à servidão por dívida. No contexto capitalista foi e tem sido ‘sentir-se livre’ em mercados oligopsônicos.

 

Desde muito antes da revolução russa de 1917 os camponeses vem lutando: a) pela superação da servidão no feudalismo; b) pela mudança estrutural da condição social camponesa; c) pelo acesso e distribuição de terras para morar e trabalhar; d) pela superação da subalternização ao capital; e) contra as lógicas dominantes de negação dos campesinatos e, mais, f) pela capacidade de organização corporativa e política dos camponeses, sob as mais distintas formas, em tão diversas épocas.

 

Ainda que nesses contextos históricos houvesse, por parte dos camponeses, ideologicamente a ilusão da conquista da libertação das subalternidades, eram contextos onde os processos de hegemonia e dominação eram distintos entre si, seja na servidão feudal seja nas suas mais variadas maneiras de inserção na formação econômica e social sob a dominação do modo de produção capitalista.

 

Não resta dúvida que apesar do desenvolvimento do capitalismo nas sociedades contemporâneas em todo o mundo (quiçá mesmo naquelas que praticavam a experiência do socialismo real) ainda perdurava em 1917 (--- perdura até hoje), ao menos subliminarmente, as questões colocadas, em 1881, por Vera Zasulich (ou Sassulitch) a Marx, sobre a possibilidade de desenvolvimento da comuna rural russa; seria ela dissolvida ou não pela expansão do capitalismo?

 

De acordo com Malagodixvi “(...) Em termos econômicos, o campesinato russo se encontrava ameaçado pelo avanço do capitalismo. Há dois aspectos, na preocupação de Sassulitch, com conteúdos teóricos diferentes: a) de um lado, o desenvolvimento econômico da própria comuna camponesa russa e a sua resistência à desagregação em função dos efeitos do desenvolvimento capitalista; b) de outro lado, a perspectiva socialista, o desenvolvimento para o socialismo, através da superação social e política da dominação capitalista. Estas duas questões estão coladas, pelo próprio ponto de partida da autora, que sofrera já a influência do pensamento de Marx, que naquela época influenciava todo o movimento de oposição na Rússia. Duas marcas já haviam sido assentadas: o processo econômico em curso, tendente ao capitalismo, e o futuro da sociedade, que deveria marchar inexoravelmente para o socialismo.”

 

Se essa questão anterior ainda for considerada pertinente para os dias atuais tudo leva a crer que se deverá tratar os camponeses no Brasil, ao menos os setores sociais mais progressistas, como sujeitos históricos capazes de assumirem a oferta de alimentos básicos para atender a demanda da população brasileira e, se possível, para a exportação. E, mais: considerar os camponeses como classe social já que, além das particularidades econômicas que o caracterizam como tal, possuem ou tem ao seu dispor, social e politicamente, instituições (históricas) de representação de interesses que vão muito além dos sindicatos oficiais.

 

A lógica que os enquadrava nas tradicionais comunidades rurais só faz sentido em algumas regiões do país, em especial naquelas onde são relativamente escassos os meios de comunicação como estradas, telefonia e transportes públicos, por exemplo. A atualização tecnologia, econômica e política dos camponeses já os colocam no mesmo patamar de saberes, ou similar, dos demais produtores rurais e urbanos.

 

Ploeg (2008)xvii ao procurar definir o camponês, tratando em particular do tema ‘da condição camponesa ao modo camponês de fazer agricultura’, sugere que: “(...) a condição camponesa flui para e inclui uma especificação do modo camponês de fazer agricultura’...A condição camponesa se traduz numa organização distinta dos processos agrícolas de produção e reprodução, através de práticas informadas e objetivas dos atores envolvidos.”

 

A presença ativa política e social dos camponeses russos desde 1861 (lei de emancipação dos servos na Rússia) “(...) faz com que os servos sejam transformados em ‘cidadãos livres’. Os camponeses passam a ter direito à propriedade, a recorrer à Justiça e a dispor de seu próprio trabalho, influindo na estrutura social, política, jurídica e militar do país.”

 

“As reformas adotadas a partir daquele momento irão promover a substituição das antigas relações patriarcais por relações burguesas. Há um avanço na constituição da sociedade civil, gerando intensa mobilização. Intelectuais radicalizam suas posições e iniciam contatos com a população. Os camponeses aliam-se a posições progressistas e, em 1870, a soma das diferentes correntes de pensamento e dos diversos interesses forma o grande movimento chamado ‘populismo.”xviii

 

Nada de se estranhar que os camponeses na revolução de outubro de 1917 exigissem a distribuição de terras. Shaninxix assinala que “segundo os historiadores soviéticos (...) a história da revolução agrária se compõe de duas etapas fundamentais. Durante a primeira (1917-1918), os camponeses ocuparam as propriedades dos grandes proprietários de terras dividindo-as em unidades ‘menores. Na segunda (finais de 1918 em diante) os pobres das aldeias se lançaram a uma segunda revolução, movida pelos desejos de igualdade, apoderando-se das terras dos kulaks (...)”

 

Ora, não é de se surpreender que os camponeses no Brasil, e em diversas outras partes do mundo, nas suas lutas por acesso à terra rural produtiva e ou à reforma agrária, tendam a adotar, conscientes ou não, as práticas de acesso à terra agrícola que os camponeses russos, há mais de cem anos atrás, já exercitavam. Vivenciam no seu cotidiano essa história de luta pela terra que se repete no enfrentamento da razão neoliberal dominante que os condenam a uma seletividade excludente.

 

 

ENFF, 24 de maio de 2017

 

iReferências

 

Costa, Francisco A. (2010). A especificidade camponesa: um trajeto de pensamento que se projeta no futuro. Belém, mimeo, 23 pp.

ii Lenin, V.I. (1980). O Programa Agrário da Social-Democracia na Primeira Revolução Russa de 1905-1907.

São Paulo, Livraria Editora Ciências Humanas, p.14 ss.

iii Trotsky, Leon (1977). A história da revolução russa. A queda do Tzarismo. 1º volume, p. 62.

iv Wolf, Eric R. Guerras Camponesas do Século XX (1984). São Paulo, Global Editora e Distribuidora Ltda., p.75 ss.

v Wolf, ibid p. 83-4.

vi Wolf, ibid p. 75

vii Segundo Wolf (Ibid p. 77): 1 acre igual a 0,4047 há, ou 1 há = 3,03525 acres.

viii Wolf, ibid p. 76

ix Wolf, ibid p. 77

x Wolf, ibid p. 88

xi Shanin, Teodor (1972). La classe incomoda. Sociología política del campesinado en una sociedade en desarrollo (Rusia 1910-1925). Madrid, Alianza, p. 308.

xii Linhart, Robert (1983). Lenin, os camponeses, Taylor. Ensaio de análise baseado no materialismo histórico sobre a origem do sistema produtivo soviético. Rio de Janeiro, Marco Zero, p. 25.

xiii Cf. Carvalho, Horacio M. (2011). A especificidade camponesa como negação da lógica capitalista. Catalão, GO, julho, 5 p.

xiv Dardot, Pierre e Laval, Christian (2009). La Nouvelle raison du monde. Essai sur la societé néoliberale. Paris, La Découverte, pp. 457-8.

xv Ibid. p. 459.

xvi Malagodi, Edgar (2003). A correspondência de Marx com Vera Sassulitch. Campina Grande, Raízes, vol. 22, n. 02, p. 10-14, jul./dez. Citação retirada da p. 11.

xvii Ploeg, Jan Douwe van der (2008). Camponeses e impérios alimentares: lutas por autonomia e sustentabilidade na era da globalização. Porto Alegre, Editora da UFRGS, p. 60.

xviii Gomes, Oziel (1999). Lenin e a revolução russa. São Paulo, Expressão Popular, junho, p. 18.

xix Shanin, Teodor (1972). Op. cit. p. 203.

 

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/186090
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