Sobre hackers, jornalistas e a informação fluida
- Análisis
A batalha de versões e contraversões surgida após a publicação de conversas do ministro Sergio Moro no site da organização jornalística Intercept colocou todos nós dentro de um redemoinho noticioso que é parte de um fenômeno definido como informação fluida. Trata-se de uma situação inédita que gera uma grande insegurança informativa na maioria das pessoas ao tornar imprecisos os limites entre o que pode ser considerado verdadeiro ou falso no noticiário jornalístico.
O caso Moro/Intercept colocou em evidência a necessidade de incorporarmos ao nosso quotidiano procedimentos como o da leitura crítica como uma forma de minimizar dúvidas e insegurança informativas provocadas pela multiplicidade de versões contraditórias cada vez mais apoiadas em questões tecnológicas sofisticadas. Leitura crítica pode ser definida, grosso modo, como a preocupação em questionar o contexto, credibilidade, relevância e exatidão de notícias publicadas na imprensa.
Sempre houve guerra de informações durante confrontos das mais diversas naturezas e objetivos. Mas o que estamos assistindo hoje não tem precedentes históricos face o volume e diversidade dos dados, fatos e eventos mencionados pelas partes em conflito. Além disso, a crescente complexidade dos processos de produção desses mesmos dados, fatos e eventos aprofunda o fosso cognitivo entre os que manejam tecnologias de ponta e a esmagadora maioria da população mundial, que recém está entrando na era digital.
O material publicado pelo Intercept levou os defensores da operação Lava Jato a identificar hackers e jornalistas como parte de uma estratégia para questionar a credibilidade dos dados, fatos e eventos relacionados aos contatos do então juiz federal, Sergio Moro, com procuradores pertencentes ao grupo que ficou conhecido como “República de Curitiba”.
Acontece que um hacker (programador digital ultraespecializado) produz dados a partir de buscas legais ou ilegais na internet, enquanto o jornalista publica material considerado de interesse da sociedade. São duas atividades diferentes, onde o hacker pode ser questionado legalmente sobre as formas como obteve os dados, enquanto o jornalista está protegido pelo direito legal de não divulgar suas fontes. É claro que o jornalista está condicionado pela obrigação ética e moral de só publicar material de fontes com credibilidade.
A estratégia de buscar o descrédito das revelações que abalaram a popularidade do ministro Sergio Moro levou os líderes da “República de Curitiba” e alguns veículos de imprensa do eixo Rio/São Paulo/Brasília a classificar o Intercept como um site, e não como uma organização jornalística na internet. O objetivo é induzir o público a ver o Intercept como um grupo político, com interesses próprios, em vez de uma página informativa, apartidária, empenhada em alimentar o debate público.
São elementos de uma guerra informativa para condicionar formas de ver uma realidade que é cada vez mais complexa diante do o crescimento espantoso do volume e diversidade de dados, fatos e eventos colocados à disposição das pessoas por meio das redes sociais na internet.
Quando o governo e os defensores da operação Lava Jato tentam levar a agenda de debates a se concentrar na questão dos hackers, surgem inúmeras questões tecnológicas envolvendo operações digitais de alta complexidade com uma enorme variedade de alternativas possíveis. Um exemplo disso é a preocupação dos seguidores do ministro Moro em levantar a hipótese de edição do conteúdo das conversas por meio da alteração do software do aplicativo Telegram.
Essa alteração é teoricamente possível, mas só um debate técnico muito complexo pode estabelecer se ela ocorreu ou não. Questões como essa são jogadas para uma opinião pública com escassos conhecimentos sobre o mundo cibernético e que ainda não entende a mudança de normas e valores comportamentais e éticos gerada pelas novas tecnologias de informação e comunicação.
As incertezas e a desorientação que afetam um número cada vez maior de pessoas são características de uma situação nova criada pela inadequação dos conceitos tradicionais de verdade e falsidade vigentes até agora em nossa sociedade. Começamos a viver uma realidade onde estamos sendo levados pela tecnologia digital a descobrir que está cada vez mais complicado tomar decisões baseadas apenas em dois pólos, como legal ou ilegal, justo ou injusto. Há dezenas e até centenas de percepções intermediárias sobre um mesmo dado, fato ou evento cuja relevância varia de acordo com cada indivíduo.
É o que já está sendo chamado de “informação fluida”, ou seja, ela muda, evolui, se transforma de acordo com a intensidade e diversidade dos fluxos noticiosos a que uma pessoa, ou grupo de pessoas, tem acesso. Não é fácil passar da segurança de uma visão de mundo baseada apenas na escolha entre certo ou errado para um ambiente onde prevalece a insegurança causada pela existência de várias possibilidades de certezas ou erros.
O caso das conversas do ministro Sergio Moro envolve inúmeras questões e posturas que devem ser analisadas separadamente, mas sem desvinculá-las do contexto geral. O que foi publicado pelo Intercept está rigorosamente dentro dos princípios jornalísticos ao divulgar conversas que são de extremo interesse social — logo, merecem ser discutidas pela população, porque interferem na forma como o poder político é exercido pelo governo federal.
Cabe aos hackers explicar como e porque eles acessaram conversas entre um juiz e promotores feitas através do aplicativo Telegram. Se houver alguma violação de leis, cabe o julgamento dos acusados. É evidente que os personagens cujos segredos e ações foram expostos ao público vão tratar de enviesar o debate para tentar minimizar o desgaste político provocado pela exposição pública de atos em desacordo com as normas constitucionais.
Mas o grande protagonista em todo esse affair é a população, que tem à sua disposição, graças a um grupo de jornalistas independentes, a possibilidade de avaliar a conduta do ministro Moro e dos procuradores da “República de Curitiba”, visando recolocar o combate à corrupção institucionalizada dentro de adequados parâmetros éticos e legais. O mérito inegável do Intercept é ter tornado isso possível.
- Carlos Castilho é pós-doutorado em Comunicação e Informação, pesquisador associado ao objETHOS. Publicado originalmente por objETHOS
edição 1042, 18/06/2019
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