Lula e o universo da mídia futrica
06/11/2002
- Opinión
Eleições é o horror. Na semana do combate do segundo turno, a revista VEJA
anuncia na capa: os radicais do PT vão exigir sangue na estrada. A ilustração é
uma besta apocalíptica com as cabeças terríveis de Marx, Lênin, Trotsky. Lá
dentro o texto nem fala neles. Mas isso é o de menos - o terrorismo é liberdade
de expressão. VEJA alerta ao povo que o PT é um aparelho comunista, e que
comunistas, como se sabe, costumam fazer churrascos infantis às terças. É o
mote do pensamento único na imprensa nacional.
O terror é lugar comum
Na TV, Regina Duarte, tão CIA quanto a VEJA, diz que tem medo de um
possível governo Lula. A dúvida é se foi contratada para fazer o terror, ou se
fez isso pelo ideal pessedebista. Como não estava fazendo propaganda de xampu
nem de fraldas descartáveis, mas difundindo o medo sobre o futuro do país,
recebeu o devido troco
Na TV ainda, Boris Casoy – leitor de "Seleções", ex-aluno do Mackenzie
paulista - também tem medo de Lula. Na entrevista pergunta se ele usa terno
Giorgio Armani. Não. Não é pergunta. BC quer apenas informar ao público que
Lula traiu a classe popular, seu povo, porque agora se veste bem. É da mesma
turma de Elio Gaspari que indignou-se publicamente porque Lula bebeu um vinho
caro, o que seria uma traição ao povo. Não colou. O que ficou claro foi a
manifestação de preconceitos contra o pobre: pobre não pode se vestir bem, nem
comer bem; pobre tem que comer pão com ovo, e se vestir de mulambento.
Nas eleições de 2002 o preconceito descobriu a imprensa brasileira.
Veículos como a Folha, Estadão, JB, e, evidentemente, O Globo, gastaram tintas
e celulose na campanha "PT dividido". Descobriram que o Partido dos
Trabalhadores tinha vários pensares. E que, dentro, era uma briga desgraçada
pelo poder. A se acreditar na quantidade de matérias publicadas no período,
imagina-se que o PT é um antro de gente com os mais variados interesses, onde
todos brigam pelo poder. Para essa imprensa oficial, o mote não acabou: mesmo
com Lula eleito, continuam a produzir matérias sobre o caso.
E vai ser assim até que apareça um cadáver na cozinha do PT. Até que surja
um escândalo, eles farão isso - intriga. De fato, chamar de jornalismo político
essa futricaria sobre as relações internas de um partido é um exagero. Tudo é
fofoca. Mas a grande imprensa mascara o que expõe, e o mexerico é visto como
notícia. É a notícia do momento. Caras, Capricho, Contigo, Veja, Folha de São
Paulo, Estadão,... É tudo a mesma coisa.
A falta de um cadáver no armário para destruir a campanha de Lula foi um
problema para os seus adversários. Ainda tentaram manter o caso Santo André, a
morte de Celso Daniel. Mas, sem provas, sem sombras, sem nada, o TV Fama não se
sustentou.
Em último caso deve se destacar o choro e a cobrança dos neoliebrais
derrotados: a VEJA pós eleições e o discurso de Arnaldo Jabor: a gente deixa
Lula governar, mas desde que mantenha as conquistas do governo FHC. Quais? Por
exemplo, a entrega do patrimônio público aos saqueadores nacionais e
internacionais; o desemprego de 10 milhões de pessoas; a expulsão de 5 milhões
do campo; a miséria de 35 milhões de pessoas...
A TV Globo merece uma avaliação especial. Afinal, o que todos esperavam é
que ela fosse coerente com a sua história e fizesse a campanha do candidato que
fosse o poder. Foi assim no regime militar; depois com Tancredo Neves/Sarney no
Colégio eleitoral; com Fernando Collor; com Fernando Henrique Cardoso,... Por
que mudaria? A Globo é o PFL da imprensa brasileira - sempre grudou no poder.
E até que a família Marinho sinalizou neste sentido, quando arrumou
emprego para Philipe Reichstull na Globopar. O ex-presidente da Petrobrás é
amigo íntimo de FHC. Botando Philipe no cargo já se garantia um pé num futuro
Governo Serra.
O diabo é que Serra, com aquele seu olhar de vampiro de novela das sete,
não deu Ibope. O povo não conseguiu mastigá-lo. Não colou fora nem dentro do
PSDB. E se chegou a 40% dos votos é algo que só o mistério das urnas
eletrônicas pode explicar.
As elites tinham a opção de Ciro. Mas Ciro não tinha ninguém. Ciro mostrou
sua cara cedo demais – era um Collor cuspido e escarrado. E foi imediatamente
execrado: já pensou cometerem o mesmo erro e botar no Governo outro
egocêntrico?
Então, o jeito era engolir um Serra com sabor de baunilha e colorau, ou o
Lula batizado pejorativamente (por eles) de light. Na dúvida, optaram pelo
"ou". Ou seja, se a Globo tinha que engolir alguém, que fossem os dois: Lula ou
Serra. Por isso foi tão carinhosa com eles. Nada de baixaria, era a ordem
interna. Pode ser que um deles ganhe, e, sendo poder, é mais saudável ficar com
ambos. Ainda mais Lula estava a frente das pesquisas, como demonstração clara
de que o povo estava farto de FHC e suas variações genéticas. Portanto, nada de
sacanear com o cara. Vai que ele ganha...
A Globo pode precisar de um hospital público...
Afinal, sua saúde não vai bem. Em 2001 conseguiu dinheiro público
(oficialmente mais de R$ 260 milhões), do serviço de filantropia do BNDES,
quando a pereba lhe apareceu no lombo. Na época, o presidente deste banco de
caridade pública foi à Câmara dos Deputados dizer que a operação era segura.
Não era. O buraco aumentou. Agora a dívida da Globopar é de US$ 2,6 bilhões (ou
US$ 1,6 bilhão, por outras fontes). Mais de 80% em dólar.
Coube ao povo pagar pelo erro de avaliação de mercado dos executivos da
empresa. Quem apostou na TV por assinatura se ferrou: há anos que a quantidade
de usuários não passa da marca dos 3,5 milhões. A Globo fez um corte de 25% e
colocou a venda 30 emissoras afiliadas. A Internet cresceu mas não foi o
bastante: eram 5 milhões de assinantes em 2000, e agora está em 8 milhões. Vai
tudo devagar porque o mercado consumidor já se esgotou – tem pobre demais neste
país e não tem mais como sustentar esse barco de luxo. Em outras palavras; já
começaram a distribuir os botes salva-vidas e o capitão já se despediu da
mulher em terra.
A Proposta de Emenda Constitucional que admite o capital estrangeiro nas
empresas de comunicação é de 1995. E a Globo era contra. Em 2001, quando
apareceu o buraco, a Globo convocou os deputados para votar a Emenda. E foi
tudo rapidinho. Depois, ainda faltava regulamentar a Emenda através de projeto
de lei, que o Executivo deveria mandar para o Congresso Nacional, para ser
discutido e votado. Não havia tempo, porém. O barco estava (está) afundando.
Então, no meio da campanha eleitoral, Fernando Henrique Cardoso despachou um
Medida Provisória. Ele mesmo, o autor de 5 mil MPs, e que posa de democrata.
Numa hora dessas, a imparcialidade jornalística, um mito similar ao de
Papai Noel, é difundido como fachada oficial dessa imprensa brasileira. Num dia
fazem uma entrevista emocional com o presidente eleito, no outro, uma
entrevista puxa-saco com o presidente que sai. E a democracia está salva. FHC
deixa o país num atoleiro, o pov na miséria, posa de estadista, diz que vai ser
um "consultor especial" da política brasileira, e tudo bem.
As matérias continuam. Elas se resumem à fofoca, a revelação de encontros
dos radicais PT ou do MST, que são tentativas de desestabilizar o Governo Lula,
e de mostrar ao povo que o melhor ainda é o que está aí. Enquanto isso, Gugu,
que fez campanha para Serra, discretamente abocanha sua emissora de TV.
Enquanto isso, pensando no futuro, e na salvação da pele perfumada dos
seus donos, a TV Globo faz um "Globo Repórter" especial para Lula. Mas não
perde sua mania de jornalismo futrica: a partir de hoje o Jornal Nacional (como
o restante da grande imprensa) vai cobrir todos os encontros do MST, da CUT, do
sindicato dos camelôs de Quibocó, enfim, aonde se acharem os tais radicais do
PT.
* Dioclécio Luz, mora em Brasília, é jornalista e escritor, autor do livro
"Trilha apaixonada das rádios comunitárias"
https://www.alainet.org/pt/node/106572?language=es
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