Lulismo: três discursos e um estilo
22/12/2004
- Opinión
1. Lulismo: inovação na política nacional e na cultura petista
Não se trata de um conceito, nem mesmo um movimento político. O
lulismo pode ser compreendido como uma tentativa de modelo
gerencial do Estado e da governabilidade política. Refere-se,
portanto, ao campo estrito da engenharia política, não se
constituindo num projeto de desenvolvimento ou projeto estratégico
de país. Como tentativa de modelo gerencial, o lulismo consome,
mas não se limita à figura política que lhe empresta o nome. Lula
é menor que o lulismo e compõe, mas não determina, suas condições.
Enquanto modelo gerencial e de governabilidade política, o lulismo
possui uma natureza sistêmica, voltada para sua própria
existência, ressentindo-se de impasses exógenos, não previstos ou
que apresentem sinais contraditórios. Em outras palavras, possui
uma ação marcada pelo pragmatismo que objetiva sua manutenção e
reprodução enquanto força política.
O lulismo teve início na campanha de 1994, mas atingiu sua
configuração atual em 2002, quando se arquitetou a campanha
presidencial, cristalizando-se com a divulgação da Carta ao Povo
Brasileiro, em junho daquele ano. Alterou profundamente o projeto
inicial petista, que se orientava por um discurso estratégico
oposto, afiliado à lógica dos movimentos sociais que emergiram nos
anos 80 que, por sua vez, sustentavam-se na declarada autonomia
política (frente ao Estado e aos órgãos de representação
política), á organização horizontalizada (com prevalência dos
mecanismos de democracia direta), cujo discurso assentava-se no
anti-institucionalismo e anticapitalismo. O discurso de então era
popular, objetivava a inclusão social e política de amplas massas
que se sentiam desalentadas. Embora esta matriz discursiva tenha
sido traduzida no Manifesto de lançamento do Partido dos
Trabalhadores como socialista, anti-soviético e burocrático, de
massas e democrático, o discurso petista sempre foi mais difuso e
sensibilizou muitas organizações e lideranças populares justamente
porque nunca adotou um referencial teórico muito nítido, revelando
a forte presença do discurso católico progressista (mais
especificamente, aquele que constituiu a Teologia da Libertação),
fundado num sentimento solidário, de natureza comunitária. Não por
outro motivo, o discurso original petista foi sempre moralista,
mais crítico que propositivo. Era um discurso de massas, fundado
numa significativa cultura política difusa e de massas, que
envolvia um amplo segmento social do país, que emergiu como ator
social no final dos anos 70, acolhido pelas organizações
progressitas da Igreja (principalmente católica). Daí seu forte
apelo de massas, crítico, irônico, autônomo e, muitas vezes,
aproximando-se do messianismo e do discurso mágico carismático.
Sabe-se que o discurso carismático procura compor as inúmeras
demandas sociais pela identidade afetiva, pela indignação em
relação às injustiças sociais e pela promessa de mudança radical.
No PT, esta concepção materializou-se numa prática assembleísta,
na estrutura em rede, constituída na muiltiplicidade de organismos
de base (núcleos territoriais ou de segmentos sociais), A tomada
de decisão interna percorria, então, um invariável processo de
debates cumulativos que, em determinado momento, foi denominado
por alguns dirigentes do partido como "consenso progressivo", onde
as divergências eram provisoriamente postas em suspensão até que o
consenso fosse atingido. O momento mais emblemático deste
inusitado processo de tomada de decisão foi a definição do partido
em relação à eleição indireta do novo Presidente da República, que
se daria no Colégio Eleitoral em meados dos anos 80. Muitos
deputados e dirigentes petistas tiveram suas posições questionadas
e suplantadas pelas deliberações ocorridas nas instâncias de base
petistas.
Contudo, por incapacidade política desta matriz discursiva
original superar o comunitarismo e forjar uma nova
institucionalidade política, outras correntes políticas que
fundaram o PT e que, até então, apareciam como marginais na
constituição da identidade petista, passaram a ocupar espaços
estratégicos e, paulatinamente, reconstruir o projeto partidário.
Esta inflexão que ocorre nas sombras, sem alarde, teve início no
interior da estrutura burocrática da seção paulista do PT. Ali,
pela primeira, uma estrutura burocrática se consolida, criando no
partido um primeiro sistema de controle político interno, a
começar pela mobilidade dos funcionários da Secretaria de
Organização e, mais tarde, da Secretaria Geral da Executiva
Estadual do PT paulista. Na segunda metade dos anos oitenta, esta
estrutura de controle consolida um núcleo dirigente, com nítida
função política sobre o conjunto dos diretórios municipais
paulistas. Tal estrutura de controle terá na Executiva Estadual da
seção paulista do PT seu núcleo duro de direção. Este núcleo de
controle instalado no coração da burocracia partidária era
composto por dirigentes de antigas organizações de esquerda, o que
alterava significativamente o escopo teórico-conceitual original
do PT. O primeiro sinal de avanço desta nova força política sobre
a prática partidária foi o controle das campanhas eleitorais
majoritárias do PT, no início dos anos 90. A partir de então, o
discurso de campanha e seu programa, a agenda dos candidatos e o
perfil de marketing passaram a ser mais e mais controlada pela
burocracia partidária. O passo seguinte foi a conquista, pela
burocracia partidária paulista, da Executiva Nacional do PT, passo
que se revelou mais complexo. A figura pública central deste
rearranjo foi o atual ministro José Dirceu, cuja carreira no
interior da direção partidária ilustra a trajetória deste segmento
burocrático, distinta do que ocorria com líderes sindicais e de
movimentos sociais ou até assessores dessas organizações sociais.
A direção partidária, que até então se forjava e se legitimava nas
frentes de luta sociais, passava a assumir um novo papel, onde o
conhecimento e localização da distribuição das diversas forças
políticas partidárias e a capacidade de negociação ou controle da
política interna suplantavam a capacidade de mobilização de
massas. O saber partidário, enfim, se alterava.
As campanhas eleitorais presidenciais de 1994 e 1998 incorporaram
outro elemento que se associou ao poder político da burocracia
partidária: o saber técnico na construção do programa partidário.
Até então, o programa partidário e de campanhas eleitorais era
construído a partir de um complexo mecanismo de consulta e
formulação gradativa dos consensos. Foi assim nas campanhas
estaduais da década de 80 e na campanha presidencial de 1989. Os
coordenadores de área lançavam mão de consultas regionais e às
diversas forças partidárias para compor um programa que retratava
um discurso hegemônico do partido. Este método era uma clara
herança da matriz discursiva original do PT, onde o consenso era
construído a partir de mecanismos de participação direta dos
filiados do partido. A partir de 1994, esta metodologia foi se
alterando rapidamente e os profissionais de cada área, articulados
pelo corpo técnico de economistas e, mais tarde, pela direção de
campanha e de marketing, assumiram um papel decisivo (ou mesmo
exclusivo), na elaboração das propostas partidárias. Assim,
perdeu-se um mecanismo inovador de formação política da
militância, que era instada a estudar e formular políticas
públicas. A partir da segunda metade dos anos 90, o saber técnico
passou a substituir os mecanismos de consulta de base.
A fusão do poder da burocracia partidária com o poder do saber
técnico gerou uma nova estrutura partidária, mais centralizada,
mais profissional, mais técnica e menos dinâmica e participativa
que deu vazão, ao que denominamos de lulismo. O lulismo, em outros
termos, é mais personalista e centralizador e busca a sua
legitimação pela precisão técnica, pela negociação, pelo controle
político e pela sedução do discurso afetivo da liderança
partidária. É, efetivamente, o oposto do processo de legitimação
do primeiro período do PT, onde o consenso construído num longo
processo de debates internos, com ampla participação e poder da
base partidária é que definia a confiança interna e legitimava a
direção partidária. Assim, no primeiro momento, a direção e a
liderança partidária eram depositários da construção e do consenso
forjado no interior da agremiação. Num segundo momento, os sinais
se inverteram e a base partidária passou a ser convidada a seguir
e a se convencer do discurso produzido pelos dirigentes e
lideranças do partido.
O lulismo é, portanto, uma nova faceta da organização, prática e
discurso petistas. É mais técnico e mais negociador com a
sociedade. É mais pragmático e flexível para com as forças
políticas externas, buscando recompor a correlação de forças
partidárias, na tentativa da montagem de um projeto hegemônico que
sustente a sua reprodução política. Mas é mais inflexível com as
forças internas do partido, porque mais controlador, mais
centralizador e menos pluralista.
O lulismo compõe-se de três matrizes discursivas mais nítidas que
sustentam um equilíbrio dinâmico interno, assumindo um movimento
pendular que privilegia, circunstancialmente, uma ou outra
concepção. São elas: o pragmatismo sindical, o vanguardismo e
burocratismo partidário e o discurso técnico de gerenciamento do
mercado.
2. O primeiro discurso: o pragmatismo sindical
A primeira matriz discursiva que compõe o lulismo é originária da
prática sindical desfechada pelo que em determinado momento a
literatura especializada denominou de "novo sindicalismo", por
privilegiar, diferentemente da tradição sindical pré-64, a
organização no local de trabalho e a autonomia frente aos órgãos
estatais e partidários.
O novo sindicalismo, contudo, não chegou a forjar um bloco muito
unitário de dirigentes. Relatos de dirigentes sindicais rurais
revelam uma primeira divisão, ainda no período anterior à fundação
da Central Única dos Trabalhadores (CUT), entre a condução
política de dirigentes urbanos em relação à incipiente organização
sindical rural. A articulação de dirigentes sindicais rurais que
se contrapunha à direção da Confederação Nacional dos
Trabalhadores Rurais (CONTAG) havia emergido, em sua quase
totalidade, das práticas da Igreja Católica, em especial, liderada
por agentes pastorais vinculados à Teologia da Libertação.
Concentrados no sul do país e, principalmente, na região da
denominada Amazônia Legal, esses dirigentes haviam passado pelo
trabalho organizativo das Comunidades Eclesiais de Base (CEB),
pelos encontros da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e pelas
oposições sindicais. O trabalho de organização de base, a formação
contínua desta base, a luta de massas, as bandeiras de mobilização
que superavam o marco legal vigente e a estrutura organizativa
horizontalizada marcavam o ideário e a prática desses dirigentes.
Alguns agentes pastorais chegavam a afirmar que o lugar da
política não era o Estado, mas a sociedade . Para os agentes da
CPT, a direção sindical deveria ser responsabilidade coletiva,
evitando-se a direção de cúpula, hierarquizada e distante dos seus
liderados. O cargo sindical, por sua vez, deveria estar a serviço
das comunidades rurais. Aqui se percebe a forte sociabilidade
rural, definida pela vida comunitária (troca de dias, mutirões ou
o código moral camponês).
Quando se inicia a articulação nacional de dirigentes que mais
tarde criariam a CUT, as diferenças entre dirigentes rurais e
urbanos começam a aparecer. Avelino Ganzer, que mais tarde seria o
vice-presidente da CUT, afirma que no Encontro Nacional dos
Trabalhadores em Oposição à Estrutura Sindical (ENTOES), realizado
no Rio de Janeiro, em setembro de 1980, as novas lideranças rurais
do país se encontram pela primeira vez, representando todo
território brasileiro. Contudo, neste encontro, os dirigentes
rurais percebem o pouco espaço que as lideranças metalúrgicas e
bancárias, em especial, conferiam para os temas relacionados ao
campo. Por este motivo, foi rapidamente articulada uma reunião
paralela no próprio ENTOES, onde dirigentes rurais exigiam
respeito. Esta diferença política se manteve ao longo dos anos,
demonstrando a hegemonia e grande dificuldade dos dirigentes
urbanos em se articular, para além do mero apoio logístico ou
político, às lutas rurais.
Mas uma segunda divisão interna entre os dirigentes do "novo
sindicalismo" parece ainda mais reveladora do que ocorreria mais
adiante. O grande impasse que gerou a divisão entre dirigentes
sindicais brasileiros no interior da CONCLAT (Conferência Nacional
da Classe Trabalhadora) e na Comissão Nacional Pró-Central Única
dos Trabalhadores, que teve seu ápice em 1983, quando da criação
da CUT, foi o artigo 8º do Regimento Interno que normatizava o
congresso nacional de criação da central sindical. O artigo 8º
garantia, no caso de algumas direções sindicais de categorias
específicas se negarem a participar deste congresso nacional, a
representação através das intersindicais estaduais. Abria-se,
assim, a possibilidade de movimentos ou oposições sindicais virem
a representar categorias sociais cujos sindicatos decidissem
boicotar o evento. Dirigentes sindicais vinculados à Unidade
Sindical (mais tarde, Conclat e CGT) defendiam a representação
exclusiva das estruturas sindicais vigentes, ou seja, limitada às
diretorias de sindicatos, federações ou confederações sindicais.
Vários dirigentes da Unidade Sindical assinaram um documento
refutando a tese da organização da central sindical pela base,
excluindo entidades sindicais por considerá-las reformistas. Esta
divergência foi constitutiva da criação da CUT.
Contudo, nos anos 90, esta tese basilar que diferenciou a CUT das
outras centrais sindicais criadas após sua fundação, foi
gradualmente esquecida. As oposições sindicais, desde então,
tiveram seu estatuto político reduzido e uma ampla estrutura
organizacional foi construída pela central sindical, tendo à
frente quatro a cinco categorias hegemônicas, com destaque para os
metalúrgicos e bancários.
Nos últimos dez anos, a hegemonia original urbana, mais
especificamente, metalúrgica e bancária da CUT, foi amadurecendo e
objetivando-se num ideário profissional e pragmático de
organização e negociação política. Esta objetivação pode ser
ilustrada em quatro iniciativas da direção da central sindical,
todas articuladas no início dos anos 90. Foram elas:
a) Enq uadramento das Escolas Sindicais: a CUT, que até meados
dos anos noventa possuía uma rede de escolas sindicais, com equipe
técnica e programação permanente, financiadas quase exclusivamente
por centrais sindicais européias e que contavam com uma importante
autonomia pedagógica e uma relativa autonomia política, passaram a
ser dirigidas e a seguir um programa determinado exclusivamente
pela direção da central sindical. Um longo e doloroso processo de
alteração da composição da direção das escolas sindicais(2) , de
sua programação e redefinição da fonte de financiamento teve
início com um corte drástico de financiamento externo. Era o
início de um processo de conformação da centralização política da
central e otimização de sua estrutura administrativo-burocrática;
b) Desarticulação e decomposição da estrutura sindical da central:
os primeiros dez anos da CUT foram dedicados às tentativas de
desenho de uma estrutura sindical alternativa àquela pautada por
federações estaduais e confederações que, por sua vez, seguiam o
princípio da unicidade sindical. Sintomaticamente, os dirigentes
sindicais rurais cutistas foram os mais criativos e inovadores em
relação à construção dessa alternativa de organização sindical.
Foram criados departamentos estaduais por categoria e um
departamento nacional, também por categoria. No caso dos
dirigentes rurais cutistas, houve incentivo para a criação de
federações por ramo de produção. Casos como o de criação, por
dirigentes cutistas, da Federação Estadual de Assalariados Rurais
(FERAESP, em São Paulo), Federação de Pequenos Agricultores do Sul
ou federações de agricultores por ramo de produção (fumo, uva,
frango), não se constituíram em fatos isolados ou iniciativas
regionais. Compunha uma estratégia política de construção de uma
central sindical apartada da estrutura confederativa
institucionalizada. Tratava-se, então, da construção de uma nova
institucionalidade sindical. Contudo, por força de decisão das
representações metalúrgicas e bancárias, a partir de 1993 teve
início uma forte pressão para que as estruturas paralelas cutistas
deixassem de existir, alterando a estratégia inicial. A CUT rumava
para disputar ou compor com as direções federativas e
confederativas vigentes. Esta alteração não se fez sem grande
resistência no interior da central, mas prevaleceu o poder de
pressão política das representações sindicais hegemônicas. Dois
fatores contribuíram para esta mudança de rumo, revelando forte
pragmatismo para construção de um poder político hegemônico no
país e no cenário sindical internacional: a eleição presidencial e
o ingresso na Confederação Internacional das Organizações
Sindicais Livres (CIOLS). Em 1992, numa plenária da CUT realizada
em 16 de julho, que contou com 300 dirigentes sindicais de São
Paulo, aprovou-se a filiação (por 176 votos a favor e 105 contra)
da central à CIOLS. Abria-se, assim, uma forte disputa da CUT com
outra central sindical brasileira, a Força Sindical, pela
representação brasileira no interior da CIOLS. Além do
posicionamento do Brasil no cenário sindical internacional, a
disputa envolvia linhas de financiamento e apoio político europeu
e norte-americano, em especial. No caso das eleições presidenciais
de 1993, forjava-se, no interior das forças sindicais, o início da
composição do arco de alianças que começava a se ampliar nas
campanhas petistas. Tal aliança envolvia arranjos políticos
regionais e de organização sindical que, entre outros elementos,
exigia acordos entre estruturas sindicais paralelas, como era o
caso dos departamentos sindicais e federações cutistas e as
estruturas federativas e confederativas tradicionais(3) .
c) Participação em Câmaras Setoriais: a participação do Sindicato
dos Metalúgicos do ABC paulista nas negociações da Câmara Setorial
do Complexo Automobilístico significou mais uma importante
inflexão do sindicalismo cutista. Até então, havia uma expressa
proibição do congresso nacional da CUT realizado pouco antes da
decisão do sindicato dos metalúrgicos. Sua participação teve
início em dezembro de 1991. A Câmara Setorial deste setor
organizava-se em cinco grupos de trabalho e realizou três acordos
(março de 1992, fevereiro de 1993 e fevereiro de 1995),
estabelecendo redução de preços de veículos, redução de impostos e
taxas setoriais, incentivos à exportação e aumento de produção,
prorrogação de data-base, criação de grupo de trabalho de
discussão de acordos coletivos de trabalho, proibição de
importação de veículos, definição de metas de produção, aumento
salarial(4) . A participação do setor metalúrgico da CUT, rompendo
com resolução do congresso da central, significou uma forte
inflexão deste setor hegemônico e inaugurou uma mudança de
paradigma da ação sindical cutista. Ao participar de um fórum
paritário de formulação de política industrial, este segmento
adota claramente um referencial que na literatura especializada
ficou cunhada de neocorporativismo, ou a participação efetiva de
representação sindical em arenas de decisão onde são gestadas ou
reguladas várias políticas públicas, criando um arranjo de
interesses privados e Estado. Em outras palavras, tinha início uma
concepção original deste campo político sindical sobre sua
participação em fóruns paritários de regulação e formulação de
políticas governamentais. Era um sinal importante de ruptura com o
paradigma que havia criado a CUT.
A inflexão da prática e estratégias cutistas, liderada pelas
representações sindicais hegemônicas no interior da CUT, apontavam
para uma cultura pragmática, que diminui a necessidade permanente
de mobilização social e pressão sobre as agências estatais,
substituindo-a pela capacidade de negociação técnica em fóruns
paritários. O pragmatismo sindical e a estratégia de negociação
técnica não articulada à mobilização permanente da base sindical
compõem um referencial importante da sua mobilidade política do
que aqui denominamos de lulismo.
3. O SEGUNDO DISCURSO: VANGUARDISMO E BUROCRATISMO DE ESQUERDA
A terceira matriz discursiva do lulismo funda-se na prática
organizacional e no movimento político oriundo de uma parcela
específica de organizações políticas de esquerda que fundaram o
PT. Trata-se de um segmento que se articulou internamente com
graus diferenciados de estruturação e identidade, e cuja liderança
ou força política nunca esteve diretamente vinculada à sua
capacidade de representar ou mobilizar a base militante do
partido.
Este segmento político, cuja força reside em sua capacidade
organizativa e administrativa (o que inclui a capacidade de
controle e gerenciamento político no interior do partido), inicia
sua projeção nacional em meados dos anos 80, a partir de um acordo
político realizado no interior da Comissão Executiva da seção
paulista do PT. Embora sem grande influência sobre movimentos
sociais (incluído o movimento sindical cutista), este segmento
político constituiu um forte eixo de estruturação e modernização
do partido. Em outras palavras, é possível perceber que lideranças
petistas carismáticas ou forjadas nas lutas sociais tiveram pouca
influência em relação à estrutura organizacional e burocrática do
partido, cedendo espaço político para este segmento político
petista.
A conseqüência imediata desta ação específica foi a construção da
unidade de ação e controle da burocracia partidária, envolvendo
especialmente as Comissões Executivas nacional e paulista do
partido. No campo marxista clássico, a estrutura burocrática do
partido significa controle interno e unidade de ação. Assim, a
burocracia forjaria e consolidaria a hegemonia do grupo político
que a controla. Claude Lefort, em diálogo com as teorias
weberianas sobre o papel político das burocracias, sugeriu que a
burocracia, ao contrário das proposições de Max Weber, possuem
ideologia e sustentam forças políticas hegemônicas. Citou, em
diversos ensaios, o papel desempenhado pela burocracia soviética
na orientação dos rumos políticos do bloco internacional sob seu
controle. Este tipo específico de burocracia não se expõe
publicamente, espraia-se por todos escaninhos administrativos e de
controle partidário, forja normas e rotinas e, em especial,
sustenta a posição política das suas correntes políticas. Este é
um aspecto fundante do vanguardismo marxista(5) : o controle
burocrático do partido e a atrofia dos fóruns públicos de debate e
centralização do processo decisório partidário.
4. O terceiro discurso: a conquista do mercado
A matriz discursiva do lulismo forjou-se à margem do processo de
amadurecimento das outras matrizes discursivas e trata
exclusivamente da leitura e perspectiva macroeconômica do país.
Esta vertente, à semelhança das outras duas matrizes, rompe com
uma tradição petista fundada desde os primórdios do partido e
ganha importância no interior do partido e meados dos anos 90. Até
então, a economia sempre esteve subordinada (ou instrumentalizada)
à dimensão política (da construção da hegemonia política) e
raramente aparecia como uma dimensão autóctone, determinada por
uma operacionalidade específica. Na campanha de 2002, contudo,
dois documentos passaram a balizar um novo referencial de
governança, inaugurada pelo lulismo: a Carta ao Povo Brasileiro
(divulgada em junho) e a Agenda Perdida (divulgada em setembro). O
primeiro documento foi elaborado pela coordenação de campanha e
fazia um anúncio ao mercado que chegou a ser interpretada, pelos
empresários, grande imprensa e parte a militância petista como um
exercício de maquiavelismo ou um instrumento de construção de
governabilidade. Em outras palavras, muitos acreditavam que a
velha subordinação da economia à tática e estratégia política
teria produzido um lance de arrojo da campanha de Lula. Mas a
Agenda Perdida consolidou uma referência para um programa de
governo que articulava e aprofundava algumas das promessas
contidas na Carta ao Povo Brasileiro. O rol de políticas nele
apresentado acabou por fundamentar vários documentos produzidos
pela Secretaria Nacional de Política Econômica do Ministério da
Fazenda, já na gestão Lula, incluindo a polêmica sobre a
necessária focalização das políticas sociais. Assim, a seqüência
de documentos inaugurada com a Carta ao Povo Brasileiro constitui
uma nova agenda econômica para o PT, compondo a base conceitual do
lulismo. Vejamos seus conteúdos.
A Carta ao Povo Brasileiro é assinada por Lula em 22 de junho de
2002. Possui uma estrutura conceitual dividida em 10 partes ou
compromissos públicos. São eles:
A. O projeto global
O documento sugere um plano de governo tendo como pilares:
a) A redução da vulnerabilidade externa pelo esforço conjugado de
exportar
mais e de criar um amplo mercado interno de consumo de massas;
b) Combinação do incremento da atividade econômica com
políticas sociais consistentes e criativas;
c) Conjunto de reformas estruturais (reforma tributária, que
desonere a produção; reforma agrária que assegure a paz no
campo; reforma previdenciária; reforma trabalhista);
d) Políticas estruturais que combatam o déficit habitacional,
combate à fome e insegurança pública.
Deste conjunto de políticas, destaca-se a mudança de concepção em
relação à reforma agrária, afastando-se do tradicional discurso
petista de "mudança de modelo de desenvolvimento" baseado na
grande propriedade monocultora e exportadora.
B. Governabilidade
O documento revela uma preocupação nítida com a construção da
governabilidade, denotando uma tendência a compreender a gestão
Lula como pautada por uma quase coalizão nacional. Destaca-se a
seguinte passagem:
O novo modelo não poderá ser produto de decisões unilaterais
do governo, tal como ocorre hoje, nem será implementado por
decreto, de modo voluntarista. Será fruto de uma ampla
negociação nacional, que deve conduzir a uma autêntica aliança
pelo país, a um novo contrato social, capaz de assegurar o
crescimento com estabilidade.
Na campanha presidencial de 1989, o staff do comitê dirigente de
Lula manifestava, de tempos em tempos, a preocupação em se evitar
uma situação próxima da ocorrida com Allende, no Chile. A passagem
acima revela uma estratégia diferenciada em relação aos exemplos
latino-americanos de transição ao socialismo pelo voto (outro
exemplo que despertou muita discussão interna no partido foi o da
Nicarágua), aproximando-se das práticas dos partidos socialistas
europeus.
C. Respeito aos contratos e obrigações do país
Este é o ponto mais significativo e original do documento se
comparado à tradição petista, revelando uma forte inflexão na
história petista. O documento afirma que a premissa com a
transição será naturalmente o respeito aos contratos e obrigações
do país. Naquele momento de campanha, o risco-país (Embi +)
atingia o maior patamar ao longo das duas gestões FHC.
Lembremos a situação de tensão que ocorreu até meados de outubro
de 2002.
Naquele momento, a subida do dólar exigiu uma brusca intervenção
do Banco Central, contrariando, inclusive, as orientações do
Ministério da Fazenda. Nos dias 9 e 10 de outubro, o dólar subiu
6%, chegando a ser cotado em R$ 4,00. O risco Embi+ chegou a ser
cotado em 2.288 pontos. O Banco Central tentou comprar papéis com
vencimento para 17 de outubro, mas a manobra é frustrada por
completo. Entre os dias 11 e 16, o mercado financeiro travou uma
significativa queda de braço. No dia 11, o Banco Central iniciou a
adoção de política intervencionista, exigindo 100% de capital
sobre exposição líquida em câmbio dos bancos e aumentando a
alíquota dos depósitos compulsórios à vista, à prazo e da
poupança. Tais medidas diminuíram a liquidez do mercado em R$ 14,2
bilhões. Somente nesse momento o dólar começou a apresentar queda.
No dia 14 de outubro o Banco Central elevou a taxa SELIC em 21%,
mas o vencimento do pagamento de dívidas ainda sustentava uma
forte instabilidade cambial. Somente a partir do dia 16, quando a
vitória de Lula parecia consolidada e as lideranças petistas
assumiram um discurso conservador em relação à política econômica,
o mercado começou a dar sinais de calmaria.
Como se percebe, o discurso de junho procurava combater o cenário
de caos que já se desenhava com a vitória de Lula. Não por outro
motivo, encontra-se esta significativa passagem na Carta ao Povo
Brasileiro:
As recentes turbulências do mercado financeiro devem ser
compreendidas nesse contexto de fragilidade atual modelo e de
clamor popular pela sua superação. À parte manobras puramente
especulativas, que sem dúvida existem, o que há é uma forte
preocupação do mercado financeiro com o mau desempenho da
economia e com a fragilidade atual, gerando temores relativos
à capacidade de o país administrar sua dívida interna e
externa. É o enorme endividamento público acumulado no governo
Fernando Henrique Cardoso que preocupa os investidores.
Esta passagem é finalizada com a constatação que a margem de
manobra, de curto prazo, na área econômica era considerada muito
pequena. O documento é extremamente cauteloso e, ao criticar o
governo FHC, aponta como antídoto uma política austera de controle
do endividamento público.
É o que Paulo Roberto de Almeida denominou de "devagar com o andor
que o santo é de barro"(6) . Segundo este autor, esta passagem
revela
Mais uma nota de medido realismo mudancista. O problema,
entretanto, das amplas negociações nacionais [sugerida pelo
documento e comentada anteriormente como busca de
governabilidade] é que elas correm o risco de produzir uma
virtual paralisia no processo decisório, na medida em que os
interesses dos diferentes grupos sociais são sempre
conflitantes (sem falar de preconceitos ideológicos,
arraigados em certos meios). Em algum momento, o "decisor de
última instância" tem de adotar uma solução a um determinado
problema, o que necessariamente irá descontentar eventuais
perdedores (...). O crescimento com estabilidade não é
assegurado apenas por meio de um novo "contrato social", que
figura aí como expediente retórico, mas depende de condições
objetivas que não são dadas apenas na esfera política.
Figura aqui o mais importante compromisso político (e também
econômico) do PT. Ainda que reconhecendo a existência de uma
instabilidade financeira, ele se compromete a respeitar os
contratos e as obrigações externas do país. Trata-se da mais
importante evolução programática (...) em relação às campanhas
anteriores, quando estava implícito (ou explícito: nas
eleições de 1989, por exemplo) o desejo ou intenção de se
aplicar, junto com outros países em desenvolvimento, um calote
na dívida externa. O clamor popular figura aqui como mero
expediente eleitoral, pois o importante é o compromisso de
respeito aos contratos.
D. A segurança dos investidores não especulativos
A crítica que o documento expõe a respeito das ações desencadeadas
pelo Banco Central sugere uma preocupação elevada com os
investidores não especulativos, que precisam de horizontes claros.
Afirma, ainda, que os especuladores saíram à luz do dia, para
pescar em águas turvas. O discurso é nítido: a estabilidade do
mercado seria perseguida a todo custo.
E. As bases para a estabilidade
O documento critica o populismo cambial e a vulnerabilidade da
âncora fiscal. Sugere que a superação da fragilidade das finanças
públicas seria a melhoria da qualidade das exportações e a
promoção da substituição de importações no curto prazo. Aqui
ocorre um "arranjo conceitual" que apresenta um nítido confronto
de idéias. Até então o documento apontava para o necessário
controle do endividamento público e, subitamente, toma um outro
rumo ao citar as exportações e substituição de importações como se
garantissem o "encontro de contas". Na história do PT, o argumento
central para explicar a crise fiscal sempre foi o endividamento
externo que provocaria uma sangria de recursos nacionais,
debilitando a capacidade de investimento público, incluindo a área
social. O deslocamento do argumento central para o campo da
captação de divisas externas parece, novamente, sugerir a
valorização e estímulo à produção nacional, tornando-a mais
competitiva, indicando o abandono de políticas tributárias
progressivas sobre capital ou renda.
F. As políticas estruturantes
Sugere, ainda, a valorização do agronegócio e a agricultura
familiar; a reforma tributária; a política alfandegária; os
investimentos em infraestrutura e a canalização das fontes de
financiamento pública na busca de divisas.
Numa frase, o documento procura articular um rol de políticas
setoriais que não se complementam necessariamente. A redação
parece atender às pautas setoriais as diversas frações dos agentes
econômicos, sem grande apuro conceitual.
G. A política externa
Destaca o documento:
Superando a nossa vulnerabilidade externa, poderemos reduzir
de forma
sustentada a taxa de juros. Poderemos recuperar a capacidade
de investimento
público tão importante para alavancar o crescimento econômico.
Esse é o melhor caminho para que os contratos sejam honrados e
o país
recupere a liberdade de sua política econômica orientada para
o
desenvolvimento sustentável.
Esta linha de argumentação revela-se, na atual conjuntura, uma
intenção que não gera resultados práticos.
H. o controle inflacionário
O documento indica que a quebra do círculo vicioso entre metas de
inflação baixas, juro alto, oscilação cambial brusca e aumento da
dívida pública seria a volta do crescimento econômico. Este
discurso parece não convencer a atual equipe econômica, embora
oriente governistas que se opõem ao que denominam "conservadorismo
do Banco Central". Pelo contrário, a equipe econômica sugere que o
combate à onda inflacionária tem como instrumento mais expressivo
a taxa de juros SELIC. Há uma nítida indicação, por mais uma vez,
de sedução dos agentes de mercado, em especial, o segmento
produtivo. Com efeito, as variáveis eleitas (juro alto, inflação
baixa, crescimento econômico) não se alinham idealmente como a
redação quer sustentar. Como muitos economistas petistas sempre
sugeriram, é possível hipoteticamente uma política de inflação
relativamente alta e endividamento público não muito elevado, com
controle cambial rígido.
I. o equilíbrio fiscal
Coerente com a observação anterior o documento articula controle
fiscal com crescimento sustentável:
Queremos equilíbrio fiscal para crescer e não apenas para
prestar
contas aos nossos credores. Mas é preciso insistir: só a volta
do crescimento pode levar o país a contar
com um equilíbrio fiscal consistente e duradouro. A
estabilidade, o controle
das contas públicas e da inflação são hoje um patrimônio de
todos os
brasileiros. Não são um bem exclusivo do atual governo, pois
foram obtidos
com uma grande carga de sacrifícios, especialmente dos mais
necessitados.
O desenvolvimento de nosso imenso mercado pode revitalizar e
impulsionar o
conjunto da economia, ampliando de forma decisiva o espaço da
pequena e da
microempresa, oferecendo ainda bases sólidas par ampliar as
exportações.
Para esse fim, é fundamentar a criação de uma Secretaria
Extraordinária de
Comércio Exterior, diretamente vinculada à Presidência da
República.
J. Superávit primário
E, novamente, indica claramente a orientação da política econômica
a ser seguida pelo futuro governo Lula:
Vamos preservar o superávit primário o quanto for necessário
para impedir
que a dívida interna aumente e destrua a confiança na
capacidade do governo
de honrar os seus compromissos.
Do que trata este documento, afinal? De uma declarada mudança de
perspectiva política e estratégica do PT. Se compararmos com o
eixo programático de 1989 e início dos anos 90, é facilmente
identificável uma ruptura com a identidade partidária que se
assentava na moratória e auditoria da dívida pública, com uma
política de reforma agrária pautada pela mudança da estrutura
fundiária do país (uma ação econômica, portanto, e não uma
política compensatória), com a redução dos lucros abusivos dos
bancos privados. Trata-se de um discurso pragmático que procura
declarar compromissos com a estabilidade da ordem econômica e
política, aumentando a competitividade internacional do país.
Três meses depois, um grupo de economistas cariocas e paulistas,
coordenados por Marcos Lisboa (da FGV-RJ e futuro Secretário
Nacional de Política Econômica do Ministério da Fazenda na gestão
Lula), divulga um documento intitulado "A Agenda Perdida:
diagnóstico e propostas para a retomada do crescimento com maior
justiça social", onde se propõe analisar as causas estruturais da
estagnação econômica e da desigualdade de renda no Brasil e
discutir reformas microeconômicas. Não bastasse a convergência de
perspectiva com a Carta ao Povo Brasileiro, este documento teria
várias passagens recuperadas em análises e proposições do
Ministério da Fazenda na gestão Lula.
As bases da pauta sugerida pela Agenda Perdida aprofundam e criam
uma coerência conceitual à "Carta". Vejamos seus principais
tópicos:
A. Dependência de poupança externa e instabilidade
A evidência empírica de diversos países em desenvolvimento
indica que, para uma taxa de crescimento da renda nacional de 5%
ao ano, seria necessário que a taxa de investimento brasileira
passasse de 20% para cerca de 25% da renda nacional. A taxa
brasileira, entretanto, não apenas é relativamente baixa, como
também possui parte significativa financiada pela poupança
externa (3% a 4% da renda nacional). No Brasil, a experiência
recente demonstra que a dependência da poupança externa é fonte
de instabilidade.
B. Necessita de recuperação da poupança pública
O aumento do custo real do investimento e a dificuldade em
manter os atuais níveis de poupança externa indicam a
necessidade tanto de recuperar a poupança pública, hoje
negativa, quanto de elevar a poupança doméstica para os padrões
observados nos demais países em desenvolvimento.
C. Aumento do crédito privado
O Brasil apresenta uma das menores participações do volume de
crédito privado na renda nacional entre os países em
desenvolvimento: 25% do PIB, que corresponde a menos da metade
do observado no Chile e menos de um terço do verificado na
Coréia. (...) O alto spread bancário é um dos responsáveis pelo
reduzido nível de investimento na economia brasileira. Seus
determinantes são de ordem microeconômica e seus principais
componentes são os seguintes: a cunha fiscal (impostos e
tributos sobre operações financeiras), o custo administrativo, a
provisão para cobrir a inadimplência e o lucro da intermediação
financeira.
D. A ausência de efetividade das políticas sociais
A falta de efetividade da política social brasileira não advém
da falta de recursos – a cada ano o país investe ao menos R$
150 bilhões nessa área – nem da ausência de programas modernos
e inovadores. A maior parte dos recursos, entretanto, não
beneficia os mais pobres, que recebem menos de ¼ do total.
(...) Cerca de 40% da desigualdade de renda do trabalho
observada no Brasil nas últimas décadas se correlaciona com a
desigualdade do grau de escolaridade. (...)
E. Fraco desempenho educacional
(...) o fraco desempenho educacional no Brasil decorreu da
dificuldade em manter as crianças e os jovens na escola,
sobretudo os de famílias de menor renda. (..) Desde o fim dos
anos 1980, os indicadores de educação, sobretudo entre os
jovens, apresentam redução significativa dos índices de evasão
escolar no ensino fundamental e médio. (...) as evidências
empíricas indicam que educar os mais velhos tem muito pouca
influência sobre seus salários reais, ao passo que a melhora
da educação dos mais jovens faz com que seus salários aumentem
em relação aos dos mais velhos.
F. Justiça do Trabalho e Previdência
A melhor estratégia para o empregador seria não pagar os
direitos trabalhistas ao longo da relação de trabalho,
deixando para fazê-lo apenas quando o trabalhador os
demandasse na Justiça, após ser demitido. O empregador ganha
tempo e paga apenas uma parte do que deve. (...) De forma
análoga, para a maioria dos empregados que ganham em torno de
um salário mínimo, não há benefício em contribuir para a
Previdência. Duas razões podem ser destacadas para esse
comportamento típico. A primeira é que a universalização da
seguridade social implementada pela Constituição de 1988 não
distingue aqueles que contribuem para a Previdência daqueles
que são atendidos sem ter contribuído para seus serviços. A
Segunda é o fato de que os contribuintes que ganham em torno
de um salário mínimo mudam muitas vezes de emprego e, em
geral, demoram muito ou não conseguem obter a aposentadoria
por tempo de contribuição.
G. Reforma Tributária e aumento de oferta de bons empregos
(...) a eliminação do imposto e do monopólio sindical
[criaria] concorrência entre diferentes sindicatos da mesma
categoria, valorizaria a afiliação e tornaria a organização
sindical mais responsável perante sua clientela. (...) Por
fim, para evitar que toda negociação acabe na Justiça do
Trabalho de dirimir conflitos entre as partes (...) devem ser
resolvidos por meio de negociações diretas entre sindicatos e
empresas (...). Em seu lugar [poder normativo da Justiça do
Trabalho] deveriam ser criados sistemas de mediação e
arbitragem, tanto públicos quanto privados.
H. Integração com comércio mundial e política industrial
O Brasil é um país com muito pouca abertura para o resto do
mundo. Exporta e importa a metade do que um país com renda
nacional semelhante á sua deveria. O volume de comércio do
Brasil é de um terço do Chile e do México e menos de um quarto
da Coréia. (...) Obviamente, a baixa taxa de comércio do Brasil
decorre parcialmente do protecionismo das economias avançadas
(...). Nas economias modernas, a tecnologia flui principalmente
por meio de exportações e importações. (...) Ademais, políticas
que aumentem simultaneamente importações e exportações reduzem a
dependência em relação aos fluxos de capital externos.
I. Políticas de Expansão de Crédito
Uma das principais dificuldades da atividade bancária é a
identificação do risco de inadimplência associado aos tomadores
de recursos. (...) Alguns custos fiscais, como a CPMF, incidem
sobre o montante da operação realizada, e não sobre o valor do
serviço gerado, tendo conseqüências importantes sobre o spread
bancário que depende dos prazos do crédito concedido ou obtido.
(...) Como operações mais curtas geram menos renda para
montantes semelhantes, a cunha fiscal em relação à renda gerada
aumenta. (...) Em um empréstimo mensal, o tomador paga um spread
de 30% caso a taxa de inadimplência seja de 1% dos empréstimos
concedidos. Nos empréstimos semanais, essa diferença sobe para
quase 100%. (...) Os devedores não vêem a cobrança judicial como
uma forma crível de recuperação do crédito [e] (...) usam a
Justiça como forma de postergar seus pagamentos. (...) A
dificuldade em executar as garantias e a impossibilidade de
prosseguir a ação de execução do principal concomitantemente à
discussão sobre a taxa de juros utilizada contribuem para a
elevação do spread praticado no mercado de crédito. (...) Por
fim (...) o longo processo de falência implica, na melhor das
hipóteses, o recebimento dos créditos concedidos em valores
depreciados.
J. Previdência e Gestão do Estado
O gasto do Estado brasileiro tem aumentado continuamente nas
últimas décadas, chegando hoje a cerca de 38% da renda nacional,
bem superior aos gastos dos países com renda por habitante
semelhante à brasileira. Além do custo com a dívida do governo,
parte desse aumento está relacionada com a elevação do volume de
recursos destinados à área social. (...) Não há uma análise
sistemática dos programas, em particular, da proporção de
recursos gastos com atividades-meio em relação às atividades-fim
da ação pública. (...) Deve-se destacar (...) que o volume de
gastos públicos em políticas sociais no Brasil parece ser
suficiente para resolver grande número dos problemas associados
à pobreza. Sua persistência parece decorrer essencialmente do
fato de que boa parte dos recursos não atinge os objetivos
estabelecidos. Um dos fatores responsáveis pelo aumento do gasto
público nas últimas décadas é a Previdência Social. (...) Se o
sistema em vigor permanecer, por volta de 2020, teremos de
escolher entre aumentar a idade de aposentadoria, cortar
benefícios, elevar as contribuições ou financiar ainda mais o
programa com impostos cobrados de toda a sociedade.
Os dez itens destacados acima revelam uma agenda de ação
governamental, com declarado viés microeconômico, buscando
interpretar e garantir as expectativas dos agentes econômicos. Por
este viés é possível identificar uma lógica interna nos argumentos
que sustentam a agenda perdida. Há um eixo de argumentação ou
diagnóstico inicial que organiza as análises e proposições
subseqüentes. Este eixo articulador parte de uma tríplice
constatação: a) é necessário reverter a baixa taxa de investimento
nacional; b) para tanto, faz-se necessário recuperar a poupança
pública e; c) estimular e garantir o aumento do crédito privado.
Esta linha de argumentação sugere o risco da dependência da
captação permanente de poupança externa para realizar
investimentos no país; da necessidade de diminuir os gastos
públicos (ou aumentar a eficiência dos gastos), garantindo um
ambiente de confiança econômica e, conseqüentemente, estimular o
crédito privado. Em relação a este último item, a interpretação
que documento sustenta é que o grande obstáculo para a oferta do
crédito privado pode ser compreendido pelas causas do spread
bancário: custos fiscais, ineficiência e deslegitimação da
cobrança judicial e longa duração do processo de falência de
empresas, diminuindo a capacidade de recuperação de créditos pelos
bancos.
É deste diagnóstico que nasce uma agenda de reformas, que objetiva
criar um ambiente de confiança e segurança nos investimentos
diretos. Reformas da Justiça do Trabalho, Previdência, Política
Tributária somam-se ao equilíbrio e estímulo simultâneo às
exportações e importações. Paralelamente, sustentando um cenário
de coesão social e crença no desenvolvimento, sugere-se maior
efetividade das políticas sociais, destacando-se melhoria do
desempenho educacional. As políticas sociais compõem um ambiente
econômico propício para reverter a dependência do fluxo de capital
externo.
Daí a persistência em denunciar a falta de efetividade da política
social brasileira não como ausência de recursos, mas como "má
focalização dos gastos sociais" (P. 45 do referido documento). O
documento afirma que existiria uma estimativa que menos de 25% do
gasto social beneficiaria efetivamente a população pobre.
A focalização é apresentada como ordenamento do gasto social,
acompanhada de um rigoroso sistema de avaliação de resultados. O
interessante é que em nenhum momento esta reorientação das
políticas sociais lança mão de qualquer reordenamento da máquina
administrativa ou qualquer princípio de controle social mais
amplo. Em termos práticos, a sugestão em relação á política social
é assim apresentada:
1. Agir diretamente sobre a desigualdade: o crescimento
econômico é impotente de reduzir a pobreza em situações de
profunda desigualdade social, como o caso brasileiro;
2. Políticas estruturais e compensatórias: expansão da
capacidade de geração de renda dos pobres (aumento de
produtividade ou garantia de valorização do que produzem),
aumentando o acesso à educação, crédito produtivo popular e
terra (reforma agrária); além de programas de transferência
de renda sem transformação de capacidade de geração de renda
(como é o caso da aposentadoria rural). Educação e aumento da
qualificação de trabalhadores pobres é destacado como eixo
desta intervenção estatal;
3. Políticas sociais e crescimento econômico: o documento sugere
a preparação da população mais pobre para que aproveitem o
futuro processo de crescimento (com possível entrada de
capital produtivo no país, investimentos domésticos e avanços
tecnológico). Sugere apoio à produção popular, garantindo
condições de comercialização e acesso a mercados, incluindo o
de crédito;
4. Setor privado e provisão de serviços: o documento questiona
se a produção de serviços públicos deve ser realizada
exclusivamente pelo setor público ou em conjunto com o setor
privado, "trazendo maior eficiência à produção" (P. 49);
5. Descentralização: estímulo à participação local como forma de
aumentar tanto a eficiência quanto a flexibilidade no desenho
das políticas sociais;
6. unificação do orçamento social da União e coordenação de
políticas.
Há uma combinação de ações que dialoga com várias escolas de
pensamento em políticas públicas: focalização, políticas
compensatórias, crédito popular e preparação para ingresso no
mercado em expansão, de um lado e; reforma agrária,
descentralização das políticas, coordenação central das políticas
sociais e críticas à vinculação do crescimento econômico como
possibilidade de diminuição da desigualdade social, de outro. Um
arranjo programático da área social que procura não transparecer
certa ambigüidade ou discurso heterodoxo em excesso. A ambigüidade
aparece justamente porque as políticas sociais se subordinam à
criação de um ambiente seguro para os investimentos econômicos e
oferta de crédito privado.
Os documentos disponibilizados pelo Ministério da Fazenda a partir
da posse da gestão Lula adotam esta perspectiva na sua totalidade.
Um exemplo é a Agenda do Crescimento e o Roteiro para a nova
agenda de Desenvolvimento Econômico, de 17 de junho de 2003.
Na Agenda do Crescimento, em seu capítulo "objetivos da política
econômica de 2003", são destacados os seis itens que
caracterizaram a ação governamental no período: reverter a
aceleração inflacionária; reduzir as taxas reais de juros de
mercado; assegurar a solvência externa; alongar a dívida pública;
garantir a sustentabilidade das contas públicas; assentar as bases
do crescimento em 2004-2007.
Já no caso do Roteiro para a nova agenda de Desenvolvimento
Econômico, os objetivos centrais desta agenda são: promoção do
crescimento econômico sustentável com melhoria do bem estar social
e aumento do volume de comércio exterior. Redução do custo Brasil,
com investimento em infraestrutura, comércio externo e
investimento tecnológico industrial são articuladas como ações
prioritárias. Daí desponta a possibilidade das Parcerias Público-
Privado no investimento em energia, transporte e saneamento
básico. A relação entre setor público e setor privado é destacado
ao longo de todo documento.
É perceptível a ausência de identidade com o discurso
desenvolvimentista clássico, restringindo-se à tímida tentativa de
cimentar as bases para o crescimento nos próximos quatro anos. Nas
políticas desenvolvimentistas, iniciadas no período Vargas e
desdobradas até os anos 70, o Estado possuía uma agenda detalhada.
Nos dois documentos do Ministério da Fazenda indicados acima, a
ausência da agenda é substituída pela construção das bases para o
crescimento.
Antes da divulgação desses dois documentos, alguns economistas
petistas, como Maria Conceição Tavares, sustentaram uma dura
crítica nos jornais da grande imprensa, em especial, no que tange
à proposta de focalização das políticas sociais. Na mesma trilha,
Márcio Pochman, outro economista petista e Secretário Municipal de
Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade da cidade de São Paulo,
denominou a focalização de "inversão dos termos do debate", porque
atribui aos gastos sociais a responsabilidade única pela redução
da desigualdade social brasileira. Para Pochman, ao contrário, as
causas da desigualdade residem na financeirização da economia e à
estrutura tributária regresiva(7) . Outros economistas se seguiram
criticando a focalização por excluir famílias que estariam acima
da linha de pobreza, mas que vivem situação de precariedade e
instabilidade, em especial, em países com frágil estrutura de
mercado de trabalho.
Há, portanto, uma unidade de pensamento econômico que se funde ao
pragmatismo e à uma prática de tipo vanguardista e etapista que
compõe o ideário do lulismo. Ele rompe com o pensamento
tradicional petista (daí as críticas públicas de diversos
economistas petistas com destaque na elaboração das estratégias
partidárias) e inaugura uma perspectiva mais técnica da condução
da política econômica, objetivando a criação de um ambiente seguro
para os investimentos produtivos. Não há, assim, qualquer sugestão
de alteração profunda da estrutura produtiva, o que inclui a
estrutura fundiária do país, a adoção de impostos progressivos,
discriminação dos investimentos públicos a partir de critérios
sociais. Seria uma incongruência porque estabeleceria o conflito
de interesses a partir da política econômica. E esta é a crítica
velada que os documentos aqui analisados sustentam em relação à
pauta tradicional da esquerda brasileira. Em suma, teria nascido
um novo paradigma econômico petista (ou lulista) a partir de
então.
5. O estilo: entre ser governo com popularidade e ser governo
popular
Desde o início da gestão Lula, vários cientistas sociais travaram
um debate acadêmico a respeito do seu estilo de governar. A
despeito das inconfessas divergências de natureza partidária, uma
das polêmicas iniciais foi a característica carismática explorada
por Lula desde a campanha eleitoral. Esta foi a proposta do
sociólogo José de Souza Martins. Em entrevista concedida ao jornal
Folha de SPaulo, em novembro de 2002, Martins analisou o discurso
de Lula como sedutor, porque a aparência do líder carismático é de
alguém igual a todos, mas que carrega um dever social. É igual e
diferente, ao mesmo tempo. E é diferente porque foi escolhido,
quase um sacrifício. Sugeriu que Lula possui tal característica
carismática, construída historicamente pela Igreja Católica
progressista. Inicialmente, elaborada por padres progressistas do
ABC paulista, mas que se espraiou pelo país através das
Comunidades Eclesiais de Base.
A proposição analítica de José de Souza Martins parece promissora,
mas revela-se insuficiente para a dinâmica e composição efetiva da
gestão Lula. Na verdade, confunde criatura com criação. Lula
possui traços carismáticos desenvolvidos desde sua época de líder
sindical. Este perfil foi trabalhado nos anos 80. É possível
recuperar fotos de assembléias de metalúrgicos no estádio da Vila
Euclides em que faixas imensas eram ladeadas pela figura de Jesus
Cristo e o perfil de Lula. Nunca houve ingenuidade em relação à
produção simbólica da liderança de Lula. Contudo, o governo Lula
(e, conseqüentemente, o lulismo) não se resume a este estilo
pessoal. A composição básica do governo Lula atualiza alguns
elementos centrais do ideário da esquerda latino-americana (que,
aliás, lança mão, de tempos em tempos, do discurso carismático). O
profissionalismo e o etapismo político (que define a política de
alianças táticas e estratégicas, para utilizar o jargão histórico
das correntes marxistas) constituem a pauta que orientou a ação do
PCB, em especial, ao longo de seus primeiros cinqüenta anos de
existência. Também compõe este ideário o projeto
desenvolvimentista-progressista. No caso do lulismo, o projeto
desenvolvimentista se subordinou á lógica de alianças, ao projeto
etapista, embora mantenha a articulação pluriclassista que geraria
a governabilidade necessária para que o Estado promova as reformas
historicamente necessárias. O Estado, assim, permanece no lulismo
como protagonista da ação pública. Como se percebe, ocorre uma
ruptura significativa com o ideário original do PT, onde a
sociedade civil organizada era protagonista das mudanças sociais e
políticas.
O carisma de Lula, portanto, compõe uma estratégia racional de
gestão. Não possui os elementos clássicos do messianismo, a
oposição aos limites impostos pela tradição ou legalidade. Ao
contrário, os traços carismáticos são empregados como mediação e
não como fim. O arco de alianças é forjado a partir da capacidade
de Lula em atrair e seduzir amplas massas sociais e, de outro
lado, pela segurança que pode garantir aos agentes econômicos.
Esta dupla face possibilita uma avaliação, por parte das forças
políticas que integram o arco de alianças governistas, sobre os
riscos e vantagens da composição. O carisma é um recurso
utilizado à exaustão como um diferencial do lulismo, um ganho para
a estabilidade do país. Não deixa de potencializar o vanguardismo
de esquerda, na medida em que personaliza esta capacidade de
governo ou é veladamente trabalhada como instrumento essencial
para a estabilidade do país, até que a pauta reformista se
complete. Assim, fica evidente que as reformas que garantirão a
segurança para o mercado geram um custo social e político que
outro líder não teria condições de conduzir. O apelo carismático
possui este lugar e papel.
Este ingrediente especial do lulismo, fundado na oratória
carismática-cristã, somado à prática organizativa clássica da
esquerda e projeto econômico de caráter liberal, cria um poderoso
repertório político, embora insuficiente para desenhar um programa
estratégico. Aliás, justamente porque é insuficiente que o carisma
é empregado à exaustão, trabalhando elementos simbólicos do
futebol, em especial. Lula distancia-se mais e mais da figura
paternal, localizada acima das disputas partidárias, explicitada
ao longo da campanha e início de sua gestão, e incrementa a
oratória carismática para se diferenciar dos adversários a partir
do segundo ano de gestão. Trata-se, portanto, de um instrumento
racional de condução política, ao contrário do irracionalismo da
dominação carismática clássica.
Lula intui corretamente sobre este estilo pessoal. É um estilo que
dialoga com a cultura política ambivalente do país, verificada em
recente pesquisa dirigida pelo cientista político Guillermo
O´Donnell e patrocinada pelo Programa Nações Unidas para o
Desenvolvimento. A ambivalência da cultura política brasileira
sugere resquícios de uma organização social de tipo estamental.
Assim, o estilo pessoal de Lula compõe a engenharia política
operada pelo lulismo.
O lulismo reporta-se, assim, à uma leitura específica da esquerda
brasileira, caudatária da crença do papel protagonista do Estado
como ator privilegiado das transformações sócias e políticas do
país. Uma leitura peculiar que se relaciona com o conceito de
capitalismo tardio. Em virtude do ingresso do país na divisão
internacional do trabalho sem que tivesse passado por um processo
de acumulação primitiva clássica, teria debilitado nosso mercado
interno, a qualificação de nossa força de trabalho e criado uma
elite econômica que adotaria hábitos de consumo equivocados,
induzindo à má utilização da poupança e consumo irracional. O
Estado assumiria o papel de demiurgo de nosso desenvolvimento e
ordenamento social. Daí decorreria uma profunda desconfiança à
participação efetiva da sociedade no processo decisório das
políticas públicas, redundando no que Claus Offe denominou de
"estatalização da sociedade", ou controle exacerbado das ações
sociais pelas agências estatais.
Os traços de nossa cultura política ambivalente reforçariam ainda
mais a crença no protagonismo do Estado. O lulismo dá continuidade
à esta leitura tradicional da esquerda brasileira e rompe com o
que havia de mais inovador no petismo. Neste sentido, reaproxima a
prática das esquerdas às práticas das elites políticas do país.
Assume, assim, contornos conservadores em relação à prática
política. E torna-se refém da busca permanente de popularidade,
justamente porque os canais de contato direto do governo com a
base social do país são obstruídos pela gestão altamente
centralizada. O ciclo vicioso se completa e explica esta
convergência peculiar entre discurso carismático, pragmatismo
sindical e vanguardismo esquerdista.
O lulismo revela-se uma importante novidade sociológica e política
para o Brasil. E é ainda uma novidade mais significativa para a
trajetória do Partido dos Trabalhadores e a construção de um
ideário democrático-popular em nosso país.
O lulismo, como prática de esquerda, é uma volta para o futuro.
* Rudá Ricci. Sociólogo, Doutor em Ciências Sociais, Professor da
PUC-Minas, membro do Fórum Mineiro de Participação Popular, do
Fórum Brasil de Orçamento e assessor da Semana Social Brasileira.
Texto produzido para o debate com Frei Betto, organizado pela
Cáritas Nordeste II, realizado em Recife, em 04/11/04, cujo tema
foi "Movimentos Sociais e Governo Lula".
(1) Ver meu livro "Terra de Ninguém" (Campinas: Editora Unicamp, 1999). Neste livro, analiso a trajetória de
constituição do sistema contaguiano de organização sindical e a emergência dos movimentos sociais rurais nos anos 80,
que criaram uma profunda crise de representação no meio rural.
(2) Destacavam-se, no período, as escolas 7 de Outubro (Belo Horizonte), Cajamar (São Paulo), Equip (Recife) e Sul
(Florianópolis).
(3) Alguns autores, filiados à correntes teóricas estruturalistas, denominam o que aqui é cunhado de pragmatismo sindical,
de sindicalismo populista. Este é o caso de Boito Jr., para quem existiria, no interior do sindicalismo brasileiro, uma
cultura política populista. O sindicalismo populista teria, como traços fundamentais, o economicismo, centralidade da
organização sindical em torno das lutas sindicais (o que denotaria pouco esforço para promover a organização de base,
no local de trabalho, das categorias) e o fetiche do Estado protetor que, na prática, redundaria na interlocução constante
e privilegiada dos organismos sindicais com agências estatais. No caso da CUT, haveria uma forte pressão política para
que a central se limitasse a um grupo de pressão antigoverno. Na prática, algumas bandeiras centrais da CUT, como fim
do imposto sindical teriam sido, aos poucos, preteridas. Esta tese, embora polêmica e sofrendo de um forte viés
escatológico, sugere o quanto o pragmatismo sindical das forças hegemônicas no interior da CUT alteraram
gradativamente a estratégia política desta central. Ver BOITO Jr., Armando. O Sindicalismo de Estado no Brasil.
Campinas: Editora da Unicamp, 1991.
(4) Ver ANDERSON, Patrícia. "Câmaras Setoriais: Histórico e Acordos Firmados (1991-1995)", IPEA Texto para
Discussão n. 667, Rio de Janeiro:IPEA, 1999. As câmaras setoriais surgiram no final dos anos 80 (Decreto 96056, de
maio de 1988 e Resolução SDI n. 13, de julho de 1989) com o objetivo de estabelecer diagnósticos de competitividade
setorial. No governo Collor, tornaram-se instâncias de resolução de conflitos de preços. Em 1992 passaram à condição
de fóruns de temas relacionados ao desempenho setorial da indústria, envolvendo redução de alíquotas de impostos,
geração de emprego e inserção no mercado externo. O acordo do setor automobilístico foi o que causou maior impacto
público no período, embora funcionassem outras câmaras setoriais (tratores e máquinas, brinquedos e indústria naval).
Em 1995, as câmaras foram desativadas, sendo timidamente retomadas na gestão Lula.
(5) É fato que no interior das correntes marxistas houve grande resistência à esta concepção de organização política.
Originalmente, a maior expoente marxista que se opôs à esta orientação foi Rosa Luxemburgo. Paradoxalmente, os
documentos iniciais de fundação do Partido dos Trabalhadores apóiam-se nesta crítica ao burocratismo e vanguardismo
de esquerda.
(6) Ver seu artigo "Dois anos de 'Carta ao Povo Brasileiro': de volta a um documento de ruptura", publicado em
www.espacoacademico.com.br.
(7) SOARES, Laura Tavares. "Políticas e movimentos sociais", In SADER, Emir (org.), Governo Lula: decifrando o
enigma. São Paulo: Viramundo, 2004.
https://www.alainet.org/es/node/111062
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