A “reforma agrária de mercado” do Banco Mundial: da panacéia à agonia?
- Opinión
A partir de 1994, o Banco Mundial (BIRD) passou a financiar ou estimular a criação de programas de compra e venda de terras por camponeses pobres e trabalhadores rurais sem terra na África do Sul e na Colômbia. Em 1997, o mesmo ocorreu no Brasil e na Guatemala. Com essa ação, o BIRD pretendia atingir três objetivos: a) implementar em países marcados por grave problema agrário um modelo alternativo à reforma agrária redistributiva; b) dinamizar os mercados de terra, de modo a promover a saída de produtores “menos eficientes” e a entrada de outros “mais eficientes”, na ótica do grande do capital agroindustrial; c) aliviar pontualmente a pobreza e a tensão social no meio rural, agravadas enormemente pelo avanço das políticas neoliberais. Essa política ficou conhecida como “reforma agrária de mercado”. Na prática, o Estado financia a compra voluntária de terras entre agentes “privados”, concedendo uma quantia variável a fundo perdido para investimentos sócio- produtivos. O proprietário é pago em dinheiro a preço de mercado, enquanto o trabalhador que compra a terra fica endividado. Se não quitar a dívida, perde a terra. Trata-se, portanto, de uma mera operação de mercado, complementada por algum subsídio. Para legitimar o seu novo modelo, o BIRD agiu em duas direções simultâneas: de um lado, fez uma crítica radical ao que ele mesmo denominou de reforma agrária “conduzida pelo Estado”, baseada na desapropriação de terras que não cumprem a sua função social; de outro, trabalhou para que o seu modelo de mercado fosse aceito política e conceitualmente como uma modalidade específica de reforma agrária redistributiva. Com esse duplo movimento, o BIRD continuou a reconhecer a necessidade de uma reforma agrária para desconcentrar a propriedade da terra em sociedades altamente desiguais, mas passou a negar a atualidade da ação desapropriacionista e redistributiva do Estado. Politicamente, este é o ponto central. No Brasil, os dois projetos-piloto orientados pelo modelo do BIRD começaram em 1997. O primeiro, chamado Projeto São José (ou “Reforma Agrária Solidária”), foi implementado pelo governo do Ceará, que aportou pouco mais de R$ 4 milhões, complementados por mais R$ 6 milhões de um empréstimo do BIRD. Financiou-se ao longo do ano a compra de 44 imóveis por 694 famílias, totalizando 23.622 hectares. O segundo, conhecido como Cédula da Terra, foi bem mais abrangente, alcançando os estados de Pernambuco, Bahia, Ceará, Maranhão e norte de Minas Gerais. Com um gasto total de US$ 121,3 milhões, financiou a compra de 398.732 ha por 15.267 famílias. Foi concluído em dezembro de 2002. O terceiro programa foi o Banco da Terra. Criado para nacionalizar e radicalizar o modelo de mercado — uma vez que não previa recursos a fundo perdido para investimentos produtivos —, financiou entre 1999 e 2002 a compra de terras por 29.715 famílias, com um gasto total de R$ 636.567.464,00, em 17 estados da federação. Considerados como instrumentos de substituição da reforma agrária, tais projetos e programas foram combatidos entre 1997 e 1999 por todas as organizações sindicais e movimentos sociais do campo. O espaço para essa articulação foi o Fórum Nacional pela Reforma Agrária e Justiça no Campo. Entretanto, a unidade política que existia foi rompida em 2000, quando a principal entidade sindical rural do país, a CONTAG, decidiu negociar com o BIRD e o governo FHC um programa muito semelhante ao Cédula da Terra, ainda em andamento: o Crédito Fundiário de Combate à Pobreza Rural (CFCP). O empréstimo de EUR 218,2 milhões que o BIRD faria ao governo brasileiro para alavancar o Banco da Terra foi redirecionado em 2001 para o CFCP, até hoje em curso. Assim, nos últimos dois anos do governo FHC, operavam ao mesmo tempo no Brasil três programas de acesso à terra via compra e venda. Por outro lado, o número de famílias assentadas pelo programa de reforma agrária decrescia fortemente, quando comparado aos anos de 1995 a 1998. A experiência brasileira com os programas orientados pelo modelo de “reforma agrária de mercado” durante o governo FHC consumiu cinco anos (1997-2002) e foi uma das mais abrangentes em nível internacional. Em termos de famílias financiadas, ficou atrás apenas da África do Sul, considerando-se o mesmo intervalo de tempo. Em nenhum outro país se gastou tanto com o financiamento de compra de terras para tantos trabalhadores rurais como no Brasil, assim como nenhum outro país contratou tal volume de empréstimos junto ao BIRD. Os projetos São José e Cédula da Terra foram encerrados no governo FHC. Já o caso do Banco da Terra/Fundo de Terras é diferente, pois nunca se resumiu a um projeto ou programa. Por ser um fundo de terras criado pelo Congresso Nacional, constitui um instrumento de caráter permanente. Pode-se mudar regras de funcionamento ou condições de financiamento, mas, enquanto Fundo de Terras, ele persiste, a menos que o próprio Congresso, por maioria absoluta, o extinga. Inexiste tal possibilidade, porque essa modalidade de ação pública interessa ao patronato rural, cuja bancada ruralista votou em bloco pela criação do Banco da Terra em 1998. Mas não só. Interessa também às duas principais entidades sindicais nacionais de trabalhadores rurais, a CONTAG e a FETRAF-Brasil. Ambas apoiam o redesenho e a ampliação dos programas de crédito fundiário operados pela política fundiária do governo Lula. Nessa lógica, o atual Banco da Terra/Fundo de Terras funcionaria como um instrumento de longo prazo para financiamento de compra de terras por trabalhadores rurais sem terra, pequenos agricultores e, nos três estados do Sul, jovens de 16 a 24 anos filhos de pequenos agricultores. Com o apoio da CONTAG para a criação do CFCP, a luta contra os programas de “reforma agrária de mercado” foi esvaziada. A unidade política que existia entre todos os movimentos sociais e organizações sindicais aglutinados no Fórum foi rompida. No que diz respeito à essa questão específica, o racha permanece até hoje: enquanto a Via Campesina afirma que o “crédito fundiário” do governo Lula nada mais é do que uma continuidade da experiência iniciada por FHC, a CONTAG sustenta que se trata de uma antiga bandeira da entidade, complementar à reforma agrária. Cabe lembrar, no entanto, que as metas do Programa Nacional de Crédito Fundiário, criado em 2003, são elevadíssimas. Financiar a compra de terras por 130 mil famílias até 2006 corresponde a 30% da meta de assentamento do programa de reforma agrária. Com metas dessa magnitude, é possível sustentar o discurso de que o “crédito fundiário” consiste num mero complemento à reforma agrária? Ou será que, nos embates em torno do plano nacional de reforma agrária, lançado em novembro de 2003, o “crédito fundiário” ganhou uma dimensão hipertrofiada, dando seqüência a uma tendência que vinha do governo anterior? De todo modo, se o desempenho do programa de reforma agrária foi baixíssimo até o momento, o mesmo se pode dizer em relação ao Programa Nacional de Crédito Fundiário. Em lugar das 37 mil famílias previstas para 2004, o programa alcançou apenas 9.186 famílias. A meu ver, esse resultado se deve a uma conjugação de fatores, dentre os quais se destacam: a) os cortes sistemáticos no orçamento do Ministério do Desenvolvimento Agrário; b) a lentidão própria do arranjo institucional (BIRD, governos federal e estaduais e entidades sindicais) necessário à implementação do programa; c) a elevação do preço da terra em boa parte do país, especialmente após 1999. Ainda é cedo para afirmar se os programas de “crédito fundiário” vão ser plenamente executados no Brasil — dando origem a um novo arranjo de políticas agrárias de caráter “misto” (desapropriação e compra e venda) —, ou se vão redundar em fracasso e desmoralização desse tipo de proposta. De todo modo, na ótica do BIRD, o Brasil continua sendo um campo privilegiado de experimentação para políticas agrárias baseadas no mercado de terras. Mesmo que o “crédito fundiário” não vá adiante, prosseguirá o embate político-ideológico em torno de qual deve ser o papel do Estado frente ao problema agrário existente no contexto neoliberal. O que está em jogo é se o Estado deve promover políticas redistributivas que atinjam o estoque de riqueza acumulado pelo “andar de cima” e alterem as relações de poder entre grupos e classes sociais, ou deve agir de maneira tópica e seletiva, por meio de políticas (mal chamadas de) compensatórias completamente desprovidas da capacidade de gerar ou impulsionar mudanças estruturais. - João Márcio Mendes Pereira é historiador, doutorando em História pela Universidade Federal Fluminense. Contato eletrônico: joaomarcio1917@yahoo.com.br Texto originalmente publicado na Revista Sem Terra, nº 34, jan./fev. de 2006, pp. 23-25.
Del mismo autor
- Conflitos e parcerias em torno de projetos socioambientais 16/01/2012
- O Banco Mundial e a construção político-intelectual do “combate à pobreza” 05/01/2011
- La política agraria contemporánea del BM 27/07/2006
- A “reforma agrária de mercado” do Banco Mundial: da panacéia à agonia? 31/03/2006
- Ofensiva neoliberal en marcha acelerada 19/09/2005
- Ofensiva neoliberal em marcha acelerada 15/09/2005