A política agrária do Banco Mundial no início do século XXI:

Ofensiva neoliberal em marcha acelerada

15/09/2005
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Está em curso uma ofensiva política do Banco Mundial (BM) no setor agrário, especialmente latino-americano. Entre 1990 e 2004 o BM fechou com 32 países 45 operações de empréstimo para projetos relacionados à sua política agrária. Somando-se projetos encerrados e em curso, observa-se que a região da América Latina e Caribe responde por 33,3% do total, o Leste Europeu e a Ásia Central, 26,6%, o leste da Ásia e região do Pacífico, 24,4%, a África e Oriente Médio, 13,4% e sul da Ásia, 2,2%. Nota-se, também, que o BM vem acelerando significativamente a aprovação de tais projetos: entre 1990 e 1994, 3; de 1995 a 1999, 19, totalizando US$ 700 milhões; de 2000 a 2004, 25, totalizando US$ 1 bilhão em empréstimos. Paralelamente, o BM vem articulando em di versos países cursos e oficinas para a burocracia estatal diretamente responsável pela implementação de políticas no meio rural, a fim de exercer uma efetiva direção intelectual e moral sobre a definição da política agrária dos Estados nacionais. Por ter concentrado a sua agenda no ajuste macroeconômico, o BM praticamente abandonou o tema agrário nos anos 1980. Por que, então, o BM voltou a se interessar por ele na década seguinte? Basicamente, por cinco razões: a) a oportunidade de despolitizar o tratamento do problema agrário existente em grande parte dos países do Sul, uma vez que o fim da Guerra Fria, na sua visão, teria enfraquecido a vinculação entre a luta pela reforma agrária e um ideário de transformação social mais abrangente; b) a necessidade de liberalizar os mercados fundiários, eliminando as barreiras legais à livre compra e venda e ao arrendamento de terras, como parte dos programas de ajuste estrututural; c) a necessidade de dar resposta aos conflitos agrários e, em alguns casos, a ações de movimentos sociais pró-reforma agrária, com o objetivo de garantir a segurança do capital; d) a necessidade de criar programa s sociais compensatórios no campo em resposta aos efeitos socialmente regressivos das políticas de ajuste estrutural; e) a necessidade de hegemonizar a mercantilização das terras rurais nas sociedades do antigo bloco soviético, de modo a acelerar e consolidar sua transição ao capitalismo financeirizado. O leitor já deve ter percebido que, em hipótese alguma, deve-se tratar a política agrária contemporânea do BM como um tema meramente "rural", descolado de processos econômicos e políticos mais abrangentes. Na verdade, tal política agrária foi desenhada e vem operando nos marcos estabelecidos pelo ajuste estrutural impulsionado pelo FMI e o BM. É por isso que ela está subordinada a dois processos antagônicos aos interesses do mundo do trabalho: de um lado, a liberalização das economias nacionais, que aprofunda a mercantilização da vida social; de outro, a contra-reforma do Estado, que substitui o seu papel redistributivo por políticas focalizadas de "alívio" da pobreza que não alteram as bases da reprodução da desigualdade e da exploração. Como se organiza a política agrária do BM? Basicamente, em oito linhas de ação: - Estímulo a relações de arrendamento. Este é tópico prioritário para o BM, depois que a reforma agrária de mercado entrou em vários países onde foi experimentada. Implica a suspensão de barreiras legais, normalmente criadas no bojo de reformas agrárias, para proteger pequenos arrendatários. O fato desse tipo de relação social ser identificado há décadas como sinônimo de exploração do campesinato e de retrocesso econômico por todas as organizações camponesas latino- americanas - não sendo reivindicado por nenhuma delas - não é levado em consideração pelo BM. Seus objetivos principais são aumentar o uso produtivo da terra e diminuir os custos de produção das empresas agroindustriais. Diversas pesquisas mostram que esse tipo de relação não vem contribuindo para melhorar o acesso à terra na América Latina. - Estímulo a relações de compra e venda. O objetivo também é aumentar o grau de mercantilização da terra, permitindo, via mercado, a saída de produtores "ineficientes" e a entrada de produtores "eficientes", sob a ótica do capital agroindustrial. - Titulação privada. Implica a concessão de títulos de propriedade a posseiros, com o objetivo prioritário de diminuir a informalidade no mercado de terras, dando mais segurança legal às transações. Para o BM, não importa se um povo considera o valor de uso da terra mais importante que o seu valor de troca, pois a sua visão de desenvolvimento é baseada na universalização da propriedade privada a todas as sociedades humanas. Em algumas situações, a titulação estimulou a venda de terras pelos camponeses e sua posterior concentração. Além disso, ao contrário do que afirma o BM, várias pesquisas mostram que o título de propriedade não melhorou o acesso do campesinato pobre ao mercado de crédito na América Latina. - Mudança da legislação agrária e criação de novo aparato administrativo. Trata-se de criar as condições legais e administrativas para a livre transação mercantil da terra, simplificando e barateando os procedimentos burocráticos e garantindo a segurança dos contratos. Nessa lógica, todo o processo deveria ser gerido pelos municípios. - Controle dos conflitos agrários. Trata-se da criação de mecanismos de resolução ou encaminhamento rápido das tensões sociais, preferencialmente por governos municipais. - Tributação da propriedade rural. O BM defende a municipalização da tributação rural e não prioriza o apoio à implementação da tributação progressiva para coibir a especulação fundiária. - Privatização das fazendas estatais no Leste Europeu e na antiga União Soviética. Trata-se de criar mercados de terra e transformar a matriz de propriedade daquelas sociedades em direção ao capitalismo. - Reforma agrária de mercado. Experimentada na África do Sul, Colômbia e na Guatemala, entrou em colapso, ficando muito abaixo das expectativas de seus operadores. No Brasil, programas dessa natureza foram iniciados pelo governo FHC e seqüenciados pelo governo Lula. Trata-se da concessão de um crédito público a camponeses pobres para a compra de terras, com uma parcela variável de subsídio destinada a investimentos sócio-produtivos complementares. Em suma, consiste numa mera relação de compra e venda entre agentes priva dos financiada pelo Estado. Este modelo integra a agenda de políticas seletivas e pontuais de alívio da pobreza rural, agravada pelas políticas neoliberais de ajuste estrutural. Ao contrário do que diz o BM, este não é outro modelo de reforma agrária, mas sim a sua negação, pois reforma agrária consiste numa ação pública que, num curto espaço de tempo, redistribui para o campesinato pobre terras privadas apropriadas por uma classe de grandes proprietários. Seu objetivo é democratizar a estrutura agrária, o que pressupõe transformar as relações de poder econômico e político responsáveis pela reprodução da concentração fundiária. Enquanto política redistributiva, implica, antes de tudo, a desapropriação punitiva de terras privadas que não cumprem a sua função social. Redistribuir terra e poder, alterando as relações de força na sociedade em favor do campesinato e das coalizões que o apoiam, nada tem a ver com transações patrimoniais privadas financiadas pelo Estado. É esta a política agrária do BM, em rápida expansão, especialmente na América Latina. Não é difícil perceber quais são suas implicações sociais e políticas. - João Márcio Mendes Pereira, é historiador, doutorando em História pela Universidade Federal Fluminense/Brasil, Rio de Janeiro, agosto de 2005.

https://www.alainet.org/pt/articulo/112994
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