Governo Lula: Exercer o poder ou fazer a História?
31/03/2003
- Opinión
"Bem sabemos que não há
Campos abertos ao retorno
Nem trilhas no mar quando há perigo
Ponhamos sinais de pedra pelos caminhos,
Sinais concretos, de profunda plenitude"
Miquel Martí i Pol
Poeta Catalão Luiz Inácio Lula da Silva assumiu a Presidência da República do Brasil em 1º de janeiro de 2003 levantando grandes e positivas expectativas no nosso país, na América Latina e em diversas partes do mundo. No Brasil, por simbolizar a conquista do governo da nação pelos setores populares, secularmente marginalizados, considerados pelas elites locais como incapazes de conduzir os destinos nacionais. Aqueles setores, que buscam representar as maiorias populares, vêm num processo de acúmulo político e organizativo desde os princípios dos anos 70, quando ainda a ditadura militar dominava o Brasil. Por isso, o governo Lula levanta profundas expectativas de resgate das imensas dívidas sociais e de início da construção de uma sociedade justa e realmente democrática entre nós. Na América Latina e em diversas partes do mundo, Lula no governo brasileiro simboliza um salto qualitativo no processo de inflexão do modelo neoliberal, simboliza o início da derrota definitiva deste modelo devido ao seu caráter inteiramente antipopular, concentrador da riqueza e da renda, elitista e excludente. Lula, para os que desejam mudanças em todo o mundo, representa a oportunidade histórica de conformar um novo caminho de transformação social e de retomar as lutas por direitos coletivos e pela emancipação humana, colocadas na defensiva após a derrota do socialismo real. No entanto, Lula chega ao governo do Brasil num momento histórico particularmente difícil. No plano internacional, os Estados Unidos da América exercem o auge do seu poder imperial nos campos econômico-financeiro, político, cultural e militar. Seu controle sobre os organismos da ONU (Organização das Nações Unidas); sobre as agências multilaterais (FMI, BID etc.); sobre o comércio internacional via suas multinacionais; sobre a opinião pública mundial via monopólio das empresas de mídia; sobre vastos espaços do planeta via poderio militar, não deixa dúvidas sobre que os EUA hoje são o grande Império da era pós-moderna e como tal exigem serem aceitos e tratados. Este Império não admite contestação de nenhuma ordem aos seus conceitos e ao seu poderio nos campos econômico, político ou militar. Para a América Latina e para o Brasil, especificamente, os EUA já possuem o seu plano estratégico de enquadramento e esvaziamento da soberania e do poder político e econômico nacional, consubstanciado na Alca (Área de No plano nacional, o Estado brasileiro veio sendo privatizado, fragilizado e destituído de seus controles sobre a vida econômica por parte de elites predadoras, o que tomou formidável impulso durante a gestão Fernando Henrique Cardoso. Tais elites, hoje controlando as finanças, por um lado e, por outro, a mídia, se encontram internacionalizadas e não têm nenhum interesse na construção de um caminho próprio pelo Brasil, um caminho de aprofundamento da democracia, um projeto nacional, política e economicamente autônomo. Lula chegou ao governo brasileiro com enorme respaldo popular - quase 53 milhões de votos - a uma proposta de mudança nos rumos do país; porém chegou encontrando condições internas e externas, no mínimo, adversas. Devido a este ambiente hostil a qualquer mudança; devido a esta "máquina do mundo atual" onde o poder está extremamente concentrado - no Império, nas finanças, na mídia; devido ao caráter oportunista e chantagista de setores das elites nacionais que o governo Lula deseja na "aliança" que governa nosso país - devido a tudo isto, as primeiras medidas do governo foram no rumo de "acalmar o mercado", de "mostrar responsabilidade" e de que é capaz de garantir a "governabilidade". Os sinais emitidos para o "poder real" do mundo e do Brasil, portanto, foram extremamente negativos para todos aqueles que vêem em Lula exatamente o início da alternativa a este "poder real": aumento dos juros; cortes no orçamento, principalmente na área social; continuidade nos moldes de FHC nas negociações da Alca; proposta de autonomia para o Banco Central; continuidade no congelamento de salários; aumento pífio do salário mínimo; manutenção sem auditoria dos pagamentos dos juros da dívida externa; manutenção dos mecanismos perversos da dívida interna; propostas neoliberais para as reformas trabalhista e da Previdência etc. etc. Todos estes "sinais" fazem pensar: quando e onde começarão os "sinais" para aqueles que elegeram Lula presidente e estão ávidos - há séculos - por mudanças? Não se trata de esperar ingenuamente por resultados imediatos, "mudanças já", iniciativas voluntaristas e arriscadas do novo governo - o que se espera, isto sim, são "sinais claros", tão claros, ou até mais claros, do que aqueles emitidos para acalmar os "donos do mundo". As medidas tomadas até agora - as de alcance estratégico, bem entendido - apenas sintonizam o Brasil com o mundo atual e suas forças dominantes e comprometem a economia brasileira a não crescer nos próximos meses. Analistas políticos, com informações privilegiadas do Palácio do Planalto, já chegam a afirmar que as "mudanças" virão - num eventual segundo mandato de Lula, a partir de 2007! Razão de ser A cada dia, o governo Lula está colocado diante da questão fundamental: qual a sua razão de ser? Trata-se de construir um governo que alavanque um projeto novo, de cunho popular, com alcance histórico nacional e mundial ou trata-se de administrar a crise, aprofundando o modelo atual, por não haver outro adaptado, articulado e aceito pela "máquina" e pelos poderes do mundo tal como ele é hoje? A primeira opção implica em mobilização social intensa e sinais claros, por parte do governo eleito, de que iremos construir algo novo, de que vamos sim no rumo da ruptura com o atual modelo e no rumo da rica invenção social de um novo projeto para o Brasil. A segunda opção implica em desmobilização, em anulação do debate e da crítica (lembremos de FHC), em eterno pedido de paciência e, ao final, no reconhecimento da impotência política. A forte expectativa política que elegeu o governo Luiz Inácio Lula da Silva, marcada pela vontade de mudanças e de transformação social, constitui o referencial básico que desafia o governo eleito e a nós, setores organizados da sociedade brasileira, a darmos conteúdo a um novo processo histórico, que aponte para a ruptura com o passado e para a construção do novo. Para que este processo ocorra plenamente, o governo Lula precisa dar sinais claros de que a sua aliança estratégica fundamental foi e continua sendo com os setores populares - com os povos indígenas, com os trabalhadores do campo e da cidade, com os excluídos, com os empobrecidos, com todos aqueles que desejam uma sociedade justa. O governo Lula precisa mostrar, além da vontade de exercer o poder, a vontade de contribuir na construção de um processo que o transcende geográfica e historicamente, um processo protagonizado pelas maiorias populares, pelos condenados da terra, pelos até hoje excluídos da história oficial do Brasil, da América Latina, do Terceiro Mundo, do sul do nosso planeta. * Paulo Maldos Assessor do Cepis. Publicado no Jornal Porantim - n.º 253 - Março-2003
Campos abertos ao retorno
Nem trilhas no mar quando há perigo
Ponhamos sinais de pedra pelos caminhos,
Sinais concretos, de profunda plenitude"
Miquel Martí i Pol
Poeta Catalão Luiz Inácio Lula da Silva assumiu a Presidência da República do Brasil em 1º de janeiro de 2003 levantando grandes e positivas expectativas no nosso país, na América Latina e em diversas partes do mundo. No Brasil, por simbolizar a conquista do governo da nação pelos setores populares, secularmente marginalizados, considerados pelas elites locais como incapazes de conduzir os destinos nacionais. Aqueles setores, que buscam representar as maiorias populares, vêm num processo de acúmulo político e organizativo desde os princípios dos anos 70, quando ainda a ditadura militar dominava o Brasil. Por isso, o governo Lula levanta profundas expectativas de resgate das imensas dívidas sociais e de início da construção de uma sociedade justa e realmente democrática entre nós. Na América Latina e em diversas partes do mundo, Lula no governo brasileiro simboliza um salto qualitativo no processo de inflexão do modelo neoliberal, simboliza o início da derrota definitiva deste modelo devido ao seu caráter inteiramente antipopular, concentrador da riqueza e da renda, elitista e excludente. Lula, para os que desejam mudanças em todo o mundo, representa a oportunidade histórica de conformar um novo caminho de transformação social e de retomar as lutas por direitos coletivos e pela emancipação humana, colocadas na defensiva após a derrota do socialismo real. No entanto, Lula chega ao governo do Brasil num momento histórico particularmente difícil. No plano internacional, os Estados Unidos da América exercem o auge do seu poder imperial nos campos econômico-financeiro, político, cultural e militar. Seu controle sobre os organismos da ONU (Organização das Nações Unidas); sobre as agências multilaterais (FMI, BID etc.); sobre o comércio internacional via suas multinacionais; sobre a opinião pública mundial via monopólio das empresas de mídia; sobre vastos espaços do planeta via poderio militar, não deixa dúvidas sobre que os EUA hoje são o grande Império da era pós-moderna e como tal exigem serem aceitos e tratados. Este Império não admite contestação de nenhuma ordem aos seus conceitos e ao seu poderio nos campos econômico, político ou militar. Para a América Latina e para o Brasil, especificamente, os EUA já possuem o seu plano estratégico de enquadramento e esvaziamento da soberania e do poder político e econômico nacional, consubstanciado na Alca (Área de No plano nacional, o Estado brasileiro veio sendo privatizado, fragilizado e destituído de seus controles sobre a vida econômica por parte de elites predadoras, o que tomou formidável impulso durante a gestão Fernando Henrique Cardoso. Tais elites, hoje controlando as finanças, por um lado e, por outro, a mídia, se encontram internacionalizadas e não têm nenhum interesse na construção de um caminho próprio pelo Brasil, um caminho de aprofundamento da democracia, um projeto nacional, política e economicamente autônomo. Lula chegou ao governo brasileiro com enorme respaldo popular - quase 53 milhões de votos - a uma proposta de mudança nos rumos do país; porém chegou encontrando condições internas e externas, no mínimo, adversas. Devido a este ambiente hostil a qualquer mudança; devido a esta "máquina do mundo atual" onde o poder está extremamente concentrado - no Império, nas finanças, na mídia; devido ao caráter oportunista e chantagista de setores das elites nacionais que o governo Lula deseja na "aliança" que governa nosso país - devido a tudo isto, as primeiras medidas do governo foram no rumo de "acalmar o mercado", de "mostrar responsabilidade" e de que é capaz de garantir a "governabilidade". Os sinais emitidos para o "poder real" do mundo e do Brasil, portanto, foram extremamente negativos para todos aqueles que vêem em Lula exatamente o início da alternativa a este "poder real": aumento dos juros; cortes no orçamento, principalmente na área social; continuidade nos moldes de FHC nas negociações da Alca; proposta de autonomia para o Banco Central; continuidade no congelamento de salários; aumento pífio do salário mínimo; manutenção sem auditoria dos pagamentos dos juros da dívida externa; manutenção dos mecanismos perversos da dívida interna; propostas neoliberais para as reformas trabalhista e da Previdência etc. etc. Todos estes "sinais" fazem pensar: quando e onde começarão os "sinais" para aqueles que elegeram Lula presidente e estão ávidos - há séculos - por mudanças? Não se trata de esperar ingenuamente por resultados imediatos, "mudanças já", iniciativas voluntaristas e arriscadas do novo governo - o que se espera, isto sim, são "sinais claros", tão claros, ou até mais claros, do que aqueles emitidos para acalmar os "donos do mundo". As medidas tomadas até agora - as de alcance estratégico, bem entendido - apenas sintonizam o Brasil com o mundo atual e suas forças dominantes e comprometem a economia brasileira a não crescer nos próximos meses. Analistas políticos, com informações privilegiadas do Palácio do Planalto, já chegam a afirmar que as "mudanças" virão - num eventual segundo mandato de Lula, a partir de 2007! Razão de ser A cada dia, o governo Lula está colocado diante da questão fundamental: qual a sua razão de ser? Trata-se de construir um governo que alavanque um projeto novo, de cunho popular, com alcance histórico nacional e mundial ou trata-se de administrar a crise, aprofundando o modelo atual, por não haver outro adaptado, articulado e aceito pela "máquina" e pelos poderes do mundo tal como ele é hoje? A primeira opção implica em mobilização social intensa e sinais claros, por parte do governo eleito, de que iremos construir algo novo, de que vamos sim no rumo da ruptura com o atual modelo e no rumo da rica invenção social de um novo projeto para o Brasil. A segunda opção implica em desmobilização, em anulação do debate e da crítica (lembremos de FHC), em eterno pedido de paciência e, ao final, no reconhecimento da impotência política. A forte expectativa política que elegeu o governo Luiz Inácio Lula da Silva, marcada pela vontade de mudanças e de transformação social, constitui o referencial básico que desafia o governo eleito e a nós, setores organizados da sociedade brasileira, a darmos conteúdo a um novo processo histórico, que aponte para a ruptura com o passado e para a construção do novo. Para que este processo ocorra plenamente, o governo Lula precisa dar sinais claros de que a sua aliança estratégica fundamental foi e continua sendo com os setores populares - com os povos indígenas, com os trabalhadores do campo e da cidade, com os excluídos, com os empobrecidos, com todos aqueles que desejam uma sociedade justa. O governo Lula precisa mostrar, além da vontade de exercer o poder, a vontade de contribuir na construção de um processo que o transcende geográfica e historicamente, um processo protagonizado pelas maiorias populares, pelos condenados da terra, pelos até hoje excluídos da história oficial do Brasil, da América Latina, do Terceiro Mundo, do sul do nosso planeta. * Paulo Maldos Assessor do Cepis. Publicado no Jornal Porantim - n.º 253 - Março-2003
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