O povo, o capital e os aprendizes de feiticeiro
06/10/2002
- Opinión
"No Brasil, a política genuína praticamente morreu. Quem aqui faz política?
De um lado as grandes empresas... Felizmente, os pobres também fazem
política no Brasil. Quer dizer, a Nação de baixo faz política, A Nação de
cima apenas segue... Em virtude de sua permanente privação, os pobres não
têm repouso intelectual e são, cada dia, obrigados a esse trabalho de
descoberta do novo que acompanha sua própria sobrevivência". Prof. Milton
Santos, in: Conferência de Abertura da 3ª Semana Social Brasileira, Itaici,
SP, agosto de 1998.
Terminou o primeiro turno das eleições presidenciais no país. Como
resultado, temos que cerca de 25% dos eleitores votaram no candidato que
encarna a continuidade do atual governo e do atual modelo econômico, José
Serra e que 75% dos eleitores votaram em candidatos que propunham
alternativas a este modelo: Lula, Garotinho e Ciro Gomes.
Teremos, agora, um segundo turno entre Serra e Lula. Neste novo embate,
Serra deverá mostrar-se como o representante da situação, porém como
crítico às "falhas" do modelo, como alguém que deseja avançar para
aperfeiçoá-lo, principalmente na questão do desemprego, da saúde, da
educação e das políticas públicas em geral. Lula deverá mostrar-se como o
representante da oposição, porém como responsável, propositivo, negociador,
amplo, capaz de costurar um grande "pacto social" que controle a dimensão
explosiva da questão social.
Ambos buscarão mostrar-se como "estadistas", para captar as simpatias do
capital internacional, da elite mundial e, concretamente, dos Estados
Unidos da América, por um lado e, por outro, para captar as simpatias do
grande capital nacional, das elites nacionais e regionais, dos grandes
meios de comunicação etc...
Ambos deverão realizar a engenharia política de fazer o discurso da mudança
que o eleitorado quer ouvir e o discurso conservador que as elites e o
mercado querem ouvir. Seja lá qual deles ganhar as eleições, o governo
continuará caminhando neste mesmo "fio da navalha", em busca da tão sonhada
"governabilidade".
O futuro presidente do Brasil herdará uma enorme crise social e econômica,
um Estado destruído, um governo fragilizado, dívidas externa e interna
impagáveis, dívidas sociais seculares e ausência de recursos, mecanismos e
políticas públicas para resgatá-las. Herdará, por outro lado, o lugar em um
mundo refém do poder financeiro mundial e da agressividade do império
norte-americano, que é a sua expressão política, ideológica, econômica e
militar.
A primeira herança exige mudanças sociais profundas; a segunda herança não
admite nenhuma mudança, pois esta deve ferir privilégios e questionar a
atual (des)ordem mundial.
Que deverão fazer nossos "aprendizes de estadista"? Contemplar a sociedade
ou contemplar o império?
Ou será que a questão deverá ser posta de outra forma: o que deverão fazer
os setores sociais organizados, os movimentos populares do campo e da
cidade, o movimento sindical, as pastorais sociais, as entidades e ONGs, os
povos indígenas para pressionar o Estado e o governo no rumo das mudanças
necessárias, secularmente sufocadas, mais do que nunca urgentes?
Qualquer um que for eleito presidente da República tentará administrar a
crise; trata-se, no entanto, de dar um rumo histórico para a solução da
crise – e que não seja, mais uma vez, às custas do povo.
A experiência recente do Plebiscito Nacional sobre a ALCA e a Base de
Alcântara foi uma grande escola que poderá nos inspirar sobre o caminho a
seguir. Sem nenhum apoio dos grandes partidos, mesmo de oposição, sem
nenhuma visibilidade pela grande mídia, sem nenhuma simpatia das elites, o
Plebiscito colocou na agenda nacional a questão da participação do Brasil
na ALCA; a questão da permanência do Brasil nas negociações da ALCA e a
questão da entrega da Base de Alcântara para o controle militar dos EUA. O
Plebiscito conseguiu a participação de mais de 10 milhões de eleitores em
todo o Brasil; mais de 95% dizendo não às três questões.
Foi um grande exemplo de força, de capacidade organizativa, de iniciativa
política e de autonomia dos movimentos populares frente ao status quo
situacionista como, inclusive, ao oposicionista.
Até que ponto a questão do dilema brasileiro não está justamente aí: como
continuar aumentando a força política e organizativa dos movimentos
populares; como continuar qualificando o seu protagonismo político; como
continuar tornando mais claras suas demandas e suas propostas políticas;
como aperfeiçoar seus mecanismos de pressão, fiscalização e controle sobre
o Estado brasileiro?
O Plebiscito Nacional sobre a ALCA e a Base de Alcântara foi uma
experiência histórica da qual devemos extrair todos os ensinamentos e
conseqüências possíveis. Um deles é, claramente, este: é possível se
avançar no rumo da construção, teórica e prática, de uma sociedade mais
justa e de uma nação soberana, onde direitos sociais sejam plenamente
reconhecidos.
Para tanto é necessário aumentar e qualificar o protagonismo de milhões e
milhões de pessoas para que estas, com base em um projeto claro de uma nova
sociedade, possam resgatar o Estado das mãos da elites, do capital e do
Império e colocá-lo, definitivamente, a serviço do povo brasileiro.
Só os setores populares mobilizados, organizados e com propostas políticas
claras poderão impedir que os nossos "aprendizes de estadista" não se
tornem "aprendizes de feiticeiro", frustrando, mais uma vez, a busca de uma
Nação livre, justa e soberana.
Paulo Maldos - CEPIS / Consulta Popular
São Paulo 07/10/02
https://www.alainet.org/pt/articulo/106497
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