Ingovernabilidade e repressão

09/04/2011
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Em crise, governo responde com violência aos protestos da população em resistência
 
Era noite de domingo, 27 de março. O atual presidente de Honduras, Porfírio Lobo Sosa, interrompeu a programação de horário nobre de todas as cadeias de rádio e televisão para declarar ilegal a greve do setor magisterial. Dizia que, a partir de então, aqueles docentes que não fossem dar aulas seriam suspensos por um período de dois meses a um ano, sem salário. Apesar da ameaça, no dia seguinte, centenas de professores, estudantes e demais setores que integram a resistência hondurenha, foram novamente às ruas, dando início a uma semana intensa de protestos que culminou num dia de Paralisação Cívica Nacional, em 30 de março.
 
“O processo de privatização da educação tem avançado em toda a América Latina. Aqui em Honduras não vamos permitir, mesmo que nos ameacem e nos reprimam. Estamos sendo despedidos, mas não podem nos tirar o amor pelo povo e pela carreira de educadores”, afirmou Edgardo Casaña, dirigente magisterial, durante uma manifestação em Tegucigalpa.
 
A aparente estabilidade do governo, que chegou ao poder através de eleições fraudulentas após um golpe de Estado, foi estremecida pela mobilização dos professores. Eles estiveram em greve durante mais de um mês contra as políticas neoliberais na educação e sofreram repressão jurídica, financeira, e principalmente física. O saldo da política das forças de segurança do Estado conta com duas mortes, centenas de feridos, principalmente pelas bombas de gás que são lançadas diretamente ao corpo das pessoas, e com centenas de manifestantes que passaram pelo menos uma noite na prisão.
 
No dia 4 de abril, uma assembleia extraordinária do setor magisterial decidiu por um “recuo tático” da greve. Casaña deixou claro que não se trata de abandonar a luta. “Temos que nos fortalecer para voltar às ruas e continuar lutando pela educação pública e pelos direitos dos docentes”, declarou o dirigente.
 
Privatização da educação
 
Ignorando os protestos e as mortes, o governo aprovou, em 1 de abril, a Lei de Fortalecimento à Educação Pública e à Participação Comunitária, que prevê a descentralização da responsabilidade sobre a educação através da criação de conselhos municipais, nos quais participariam os pais das crianças e jovens em idade escolar. Durante as manifestações, os professores alertaram para o risco de privatização a partir dessa lei. “Os municípios não têm dinheiro nem para pagar os salários dos professores, quanto mais para ficar responsáveis pela educação. Vai ser um fracasso e uma desculpa para privatizar as escolas”, explicou a docente Dirian Pereira.
 
O professor de economia Marcelino Borjas, um dos fundadores do Colégio Profissional Superação Magisterial Hondurenho (Colprosumah, na sigla em espanhol), explica que a mobilização dos professores de Honduras está ligada à crise do sistema educacional na América Latina. “Essa crise se agudiza mais com o golpe civil-militar, que aprofunda o modelo neoliberal em Honduras, diminuindo a participação do Estado na gestão de recursos financeiros sociais e estabelecendo a desarticulação de sujeitos coletivos”, afirmou.
 
Segundo Borjas, o magistério é o setor com maior desenvolvimento organizacional deste país. São cerca de 65.200 docentes organizados em 6 sindicatos ou colégios magisteriais. “São 48 anos de história vinculada à luta política e anti-imperialista”, ressaltou. Este mesmo setor esteve mobilizado em agosto do ano passado e, apesar da repressão, conseguiu estabelecer acordos com o governo como, por exemplo, o pagamento dos salários atrasados e a realização de uma auditoria para investigar a corrupção que assola o Inprema (Instituto de Previdência Magisterial). Nenhum acordo foi cumprido.
 
Desgoverno
 
Os docentes também denunciam que o atual governo roubou 7 milhões de lempiras (equivalente a 370.000 dólares), de um patrimônio de 20 milhões, do Inprema. “Aí entra um elemento importante que é a crise financeira. O regime golpista, como não é reconhecido internacionalmente, pela OEA, por exemplo, não tem acesso a recurso financeiro. Se tem, é em pequena quantidade, que não resolve o problema. Por isso, pegou dinheiro do Inprema. Exigimos o pagamento dessa dívida”, afirmou Borjas. Segundo informações da imprensa local, 6 mil professores estão com salários atrasados e 9 mil não podem se aposentar por falta de recursos do Inprema.
 
Para Bertha Oliva, defensora de direitos humanos e coordenadora do Cofadeh (Comitê de Familiares de Presos e Desaparecidos de Honduras), a alta do preço do combustível e o consequente aumento do preço dos alimentos no mundo contribuem para a ingovernabilidade do mandato de Porfírio Lobo Sosa. “É evidente que o regime está em crise. Cada vez se acrescenta a ingovernabilidade. Não nos estão asfixiando só com gases, mas também com a falta de comida”, afirmou.
 
Greve Nacional é reprimida à base de gás
 
Foi também para lutar contra o alto custo de vida em Honduras que a Frente Nacional de Resistência Popular (FNRP) - que agrega várias organizações de esquerda deste país - convocou um dia de Greve Cívica Nacional, sob o lema “Desculpe o incômodo, estamos lutando para construir a Nova Pátria”. Ocupação de estradas, ruas e universidades aconteceram em diversas regiões da nação centro-americana. Em todos os pontos houve repressão e, em Tegucigalpa, a sede de um dos principais sindicatos organizados do país, o Sindicato de Trabalhadores da Indústria da Bebida e Similares (Stibys), foi bombardeada com gases lacrimogêneos.
 
São tantas as bombas de gás lacrimogêneo lançadas sobre os manifestantes que criou-se um pequeno comércio de artefatos que minimizam os efeitos dos gases. Um pano molhado com vinagre custa 50 lempiras (equivalente a R$ 4,50) e um par de óculos de natação custam 40 (R$3,50). Além disso, a imprensa anda equipada com máscara anti-gas e capacete, já que os jornalistas também são agredidos durante as manifestações. Um cinegrafista do canal local Cholusat teve o nariz quebrado após ser atingido por uma bomba. Muriel Rodriguez, do canal Globo, levou tiros de bala de borracha no pé. “Por sorte não me machuquei muito, mas isso é uma falta de respeito, um atentado à livre expressão” desabafou o jornalista.
 
Mesma sorte não teve a estudante Lisa Aguilar que foi atacada com bombas de gás dentro do edifício do Copemh (Colégio de Professores de Educação Média de Honduras). A estudante explica que a polícia perseguiu os manifestantes após os protestos, gaseificando o prédio onde eles se refugiaram: “começaram a bombardear o edifício. Havia cerce de 200 pessoas e criou-se automaticamente uma câmara de gás lá dentro. Não tínhamos oxigênio suficiente para respirar. Quando deixaram de atirar as bombas, saímos ao pátio para respirar melhor. Nem se quer tinham saído umas 30 pessoas, começaram a bombardear de novo. Dessa vez, as bombas eram atiradas diretamente no corpo das pessoas. No meu caso, me acertaram duas bombas, uma na perna outra no braço. Ao inalar o conteúdo tive uma crise de asma e desmaiei. Quando acordei estava no hospital”, relatou Aguilar, que exibia duas marcas roxas onde foi atingida pelas bombas.
 
Carlos Leyes, da ONG de direitos humanos Comissão de Verdade, denuncia que a polícia está usando as bombas em quantidades absurdas. “Só em uma ocasião, na mobilização de estudantes na Universidade Autônoma de Honduras, a força repressiva usou mais de 200 bombas de gás lacrimogêneo. Os danos de imediato e a longo prazo podem ser terríveis para as pessoas que receberam os gases, inclusive para a polícia e o exército”, alertou Carlos Leyes.
 
Repressão “baixo perfil”
 
No período que antecedeu os conflitos a partir da greve dos professores o clima era de aparente calmaria. Berta Oliva explica que a repressão teve várias etapas, desde o golpe e que, preocupado com a legitimidade internacional, Pepe Lobo procurou intimidar a resistência “por baixo dos panos”.
 
No início do golpe, relata Oliva, “todo mundo viu que a repressão era massiva. Porque o plano era que o povo se cansasse, como havia acontecido nos golpes anteriores, em décadas passadas”. Depois, completou, “começaram com as ações sistemáticas e seletivas, que eram silenciadas”. Nesse período, que compreende o primeiro ano do governo de Porfírio Lobo, de janeiro a dezembro de 2010, a Cofadeh contabilizou 463 mortos. Entre eles estão 10 jornalistas, 32 da comunidade LGTB, cerca de 30 campesinos e 30 professores.
 
Outra tática utilizada pelo regime é a aplicação de ações ditas legais contra organizações. Berta Oliva dá o exemplo do próprio Cofadeh que sofreu uma ordem de sequestro de documentos. Segundo a defensora de direitos humanos, também nesse período foram inúmeros os registros de denúncias de ameaças de morte por telefone a membros da resistência hondurenha.
 
- Pilar Rodríguez é Correspondente em Tegucigalpa (Honduras)
Matéria publicada no Jornal Brasil de Fato, edição de 7 a 13 de abril de 2011.
https://www.alainet.org/pt/active/45728
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