O "monstro" e seu criador
17/12/2003
- Opinión
Saddam Hussein é apresentado ao mundo como um verdadeiro monstro. A própria foto,
divulgada avidamente por toda a mídia, se presta a isso: sujo, desgrenhado, barbudo e abatido.
É como monstro que sinistramente emerge das entranhas da terra, é como monstro que
finalmente sai de seu esconderijo à luz do dia, é como monstro que cinicamente o exército e o
presidente dos Estados Unidos o exibem diante das câmeras e holofotes.
Impõem-se aqui algumas perguntas inevitáveis: quem criou esse "monstro" e o outro, Bin
Laden, igualmente procurado? Quem os nutriu a partir das contradições da trajetória histórica do
Iraque ou do Afeganistão? Quem os armou nas décadas de tirania e massacre? Quem os utilizou
no jogo de xadrez da luta pelo petróleo? Quem agora os promove do anonimato ao grande palco
da história mundial, abandonando-os hipocritamente a um linchamento moral e político?
A resposta a essas perguntas é uma só e todos a conhecemos: os Estados Unidos. Os mesmos
Estados Unidos que hoje apontam o "tirano do Iraque" como um troféu da cruzada planetária do
bem sobre o mal, ao mesmo tempo que prometem intensificar as buscas ao "inimigo número
um" na luta contra o terrorismo. O golpe de marketing diante da opinião pública não poderia ser
melhor, seja em âmbito internacional seja no cenário das eleições estado-unidenses.
Mas pergunta puxa pergunta. Quem é mais nocivo na atual cultura de guerra, a mão que segura
a arma e mata ou os braços que a sustentam? Quem é mais perverso na difusão da violência, o
monstro ou seu criador? Quem deveria sentar-se no banco dos réus, Saddam Hussein os
responsáveis pela política externa dos Estados Unidos?
A verdade é que ambos os lados são conduzidos ao tribunal. Enquanto um deverá ser julgado
por um tribunal iraquiano ou internacional, os outros já vêm sendo julgados pelas forças vivas e
ativas da história. Enquanto um terá de prestar contas diante de seu povo e de alguns juízes,
jurados e testemunhas, outros devem explicações a toda a humanidade. Enquanto um deverá
ser condenado pelos crimes contra sua própria gente indefesa, os outros já foram duramente
condenados pelos danos aos povos empobrecidos de todo o mundo, pela devastação e
destruição do planeta e pelo uso indiscriminado dos recursos naturais.
Imputa-se a Saddam Hussein milhares de assassinatos através da eliminação de minorias
étnicas. Imputa-se à política do governo norte-americano um imperialismo que, ao concentrar
cada vez mais a riqueza, leva à miséria, à exclusão social, à fome e à morte milhões de pessoas
em toda a face da terra. Imputa-se ao primeiro controlar com mão de ferro o poder iraquiano
para manter o luxo e a ostentação de poucos. Imputa-se ao segundo a sustentação secreta
dessa política de terror não só no Oriente, mas em várias regiões do planeta.
Em síntese, Saddam Hussein ou Bin Laden não passam de "bodes expiatórios" atirados ao furor
cego das massas, para salvar as aparências de uma "democracia" que não é incapaz de
sustentar-se eticamente. Os apelos ao combate do terrorismo internacional escondem o
terrorismo de Estado, legitimado pelas "instituições democráticas ocidentais". Escondem, mas
também revelam toda a sua nudez e fragilidade.
O julgamento dos movimentos e forças sociais na história, a exemplo da criança da fábula, não
se enganam ao descobrir que "o rei está nu".
https://www.alainet.org/pt/articulo/109003
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