Da subjetividade neoliberal à práxis emancipatória

13/09/2009
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Sou tentado a supor que a maior parte das pessoas no mundo contemporâneo está vivenciando um encantamento, uma 'consciência feliz' (Marcuse[1]), que as faz supor que a racionalidade neoliberal é uma resultante do curso natural das coisas. Nem sempre, ou muito pouco, as pessoas percebem que essa subjetividade neoliberal subordina a concepção de sociedade ao mercado, faz da história humana a história da concorrência entre as pessoas, torna a sociedade uma máquina de produzir e consumir e transforma o cidadão político num neosujeito consumidor. Deixam mesmo de vislumbrar que a sedução neoliberal nos condena à barbárie.
 
A subjetividade neoliberal é contrária ao Estado de Bem-Estar e o Estado Socialista. Essa cosmovisão vem se consolidando desde 1947 com a constituição da Societé du Mont Pelèrin, na Suíça, quando um grupo de intelectuais e de grandes empresários se manifestou a favor da economia de mercado e de uma 'sociedade aberta' na escala mundial. Essa racionalidade é, desde então, explicitamente reafirmada pelo governo norteamericano, como o fez na Doutrina Truman (defender o mundo capitalista contra a ameaça socialista), no Plano Marshall (Programa liberal de Recuperação Européia) e na Guerra Fria Cultural[2] (a cultura como instrumento de persuasão política contra o marxismo).
 
Com a mudança na correlação de forças políticas internacionais a partir da década de 1990, com a queda simbólica do muro de Berlim e a desagregação da União Soviética, essa subjetividade neoliberal torna-se hegemônica na escala mundial, com exceção de algumas poucas sociedades, negando continuadamente as conquistas democráticas e sociais obtidas pelas lutas de libertação e de afirmação dos direitos humanos que os povos de todo o mundo vieram construindo durante os últimos séculos.
 
A idolatria do mercado presente na concepção e prática (neo)liberal omite que o mercado é uma realidade construída que requer não apenas a intervenção do Estado como um sistema de direito específico que deve garantir o primado absoluto do direito privado sobre o direito público. O discurso dominante ilude a todos nós pela fascinação que desperta as novas e inusitadas mercadorias fazendo-nos crer na naturalidade do mercado, cuja essência é constituída pela concorrência como norma geral das práticas econômicas. E o Estado Liberal não se faz apenas o responsável por implantar a concorrência entre todos os agentes econômicos. Ele próprio é submetido à norma da concorrência, segundo o ideal de uma sociedade de direito privado.
 
Nesse processo, a universalização das normas de concorrência alcança os indivíduos nas relações entre eles mesmos, gerando um indivíduo-empresa, o indivíduo empreendedor de negócios, afirmando a subjetividade neoliberal como um modelo de subjetivação. O resultado desse encantamento e do imobilismo ideológico daí decorrente é a aceitação alienada de uma nova racionalidade que pressupõe a diluição do direito público em benefício do direito privado, a conformação da ação pública aos critérios de rentabilidade e produtividade privadas, a incitação à desvalorização simbólica da lei como ato próprio do Legislativo e a promoção do cidadão-consumidor como um neosujeito liberal.
 
Resulta, então, um enfraquecimento de todo ideário implícito em cada instituição, uma espécie de desimbolização[3]. Nesse contexto somos intimados a vivenciar um ser e um vir-a-ser sem nenhum princípio ético, nenhuma interdição, numa exaltação de uma escolha infinita e ilimitada. Nesse estado de 'desconexão simbólica' o neosujeito é obrigado a se construir sobre ele mesmo para se conduzir na vida, em nome da livre escolha. A estrutura simbólica torna-se objeto de uma instrumentalização pela lógica econômica capitalista. A identidade se torna um produto do consumo. Tudo é substituído pela razão empresarial e pelo mercado, inclusive a utopia.
 
A práxis neoliberal condiciona a maioria da humanidade aos desejos de consumo e às necessidades que ele cria, transformando nossos desejos em necessidades. Ela nos faz acreditar que o que desejamos é necessário. E o consumismo se torna um referencial de vida.
 
O progresso técnico inesgotável de busca de novos produtos é devido não apenas ao processo geral de acumulação ampliada do capital como da aliança entre mercado, ciência e tecnologia, tudo debaixo da subjetividade neoliberal que lhes dá sentido. A crescente privatização da ciência e da tecnologia segue o temerário caminho da privatização do saber. O saber torna-se propriedade intelectual, uma mercadoria.
 
A suposição de que o conhecimento deveria ser um bem comum, segunda uma ética do interesse público, tornou-se uma fantasia na sociedade capitalista. Ao ser privatizado o saber, a sua valorização social se dilui e se torna um instrumento de dominação. Nessa perspectiva, a contradição entre a propriedade intelectual e a necessidade política de livre circulação e difusão do conhecimento faz-se uma das causas do ajuste comercial do papel da universidade à racionalidade dominante.
 
A hipótese de uma universidade crítica pressuporia uma sociedade crítica. No entanto, a sociedade sob a hegemonia neoliberal exige e produz um novo tipo de ciência e de tecnologia: um pragmatismo científico a favor do lucro e uma criatividade destrutiva da noção de 'bem comum'. O desafio é reinventar uma nova epistemologia que, ao mesmo tempo, leve em consideração aquelas do passado e nos permita superá-las sem a tentação nostálgica da dialética en­tre público e privado.
 
É possível sugerir[4] que a direção intelectual e moral da concepção de mundo das classes dominantes sobre toda a sociedade se constrói e se afirma pela obtenção sistemática de mais consensos do que dissensos. Isso se verifica porque a prevalência da direção intelectual e moral dos valores e práticas das classes dominantes sobre toda a população e as instituições de um país, não se verifica sem o apoio das práticas de coerção. Daí que num processo de hegemonia o consenso está sempre acompanhado pela coerção.
 
Isso se dá porque estão presentes na práxis social as iniciativas populares (ações concretas e proposições políticas) que sustentam idéias orgânicas contra-hegemônicas, mesmo que esparsas ou fragilmente articuladas. Para que essas idéias divergentes em relação à ideologia dominante possam se constituir em iniciativas contra-hegemônicas elas necessitariam se consolidar como uma negação da concepção de mundo hegemônica, no sentido de uma práxis emancipatória.
 
Na maior parte das vezes as idéias e práticas divergências não têm tido o significado de questionamento do modo de produção dominante e da sua superestrutura. No limite tendem para a concretização de reformas que, se não reforçam e melhoram o desempenho hegemônico do modo de produção e de vida dominantes, não o afetam estruturalmente de maneira significativa.
 
 “(...) as ideologias dominantes da ordem social estabelecida desfrutam de uma importante posição privilegiada em relação a todas as variedades de ‘contraconsciência’. Assumindo uma atitude positiva para com as relações de produção dominantes, assim como para com os mecanismos auto-reprodutivos fundamentais da sociedade, podem contar, em suas confrontações ideológicas, com o apoio das principais instituições econômicas, culturais e políticas do sistema todo. Ao mesmo tempo, visto que se identificam ‘interiormente’, digamos assim, com os processos contínuos de reprodução sócio-econômica e político-ideológica, podem estipular a ‘praticabilidade’ como pré-requisito absoluto para a avaliação da seriedade ou da inadmissibilidade categórica da crítica, bem como da legitimidade da mudança social. Assim, não é acidental que as ideologias dominantes insistam nas insuperáveis virtudes do ‘pragmatismo’ e da ‘engenharia social gradual’, rejeitando (no mais das vezes, pela simples atribuição de algum rótulo exorcizante) todas as formas de ‘síntese total’ ou de ‘holismo’..." (Meszaros[5]).
 
A prática dominante de realimentação da subalternidade das massas populares estabelece os limites das motivações e mobilizações para as lutas a favor de demandas sociais e por direitos: restringirem-se à reivindicação e ao protesto. Ainda assim, esses dois tipos de iniciativas de mobilização social poderão contribuir, em casos particulares, para a acumulação de forças populares no sentido de se alcançar as formas de contraconsciência capazes de gerarem a crítica radical à ordem estabelecida, desde que essas iniciativas sejam portadoras, mesmo em caráter ainda incipiente, de uma ‘ideologia abrangente’ com potencial estratégico de mudanças.
 
Marx afirmava que a história não faz nada. A emancipação humana é uma tarefa nossa, de homens e mulheres que agem sob condições dadas e que, apoiados por teorias adequadas, procuram pela sua ação abrir um futuro. Quem sabe, como indagou José Saramago, uma insurreição das consciências livres é o que necessitaríamos. Será ainda possível?
 
É tempo --- desde há muito tempo, de se lutar contra a morte, contra os Impérios e a mundialização capitalista porque eles advogam ideologicamente uma mundialização feliz, o melhor dos mundos, enquanto de fato nos torna miseráveis como pessoas e como povos.  E pretendem fazer de tudo uma mercadoria, inclusive os nossos sonhos e as nossas utopias.
 
É preciso coragem para começar nosso discurso pela negação: rejeitar um mundo que sentimos que está equivocado, que sentimos ser negativo. Afirmar que as verdades que nos tentam infundir são verdades de um mundo falso. De um mundo ao avesso. Nossa negação é uma recusa a aceitar a inevitabilidade da desigualdade, da miséria, da exploração e da violência crescentes.[6]
 
Deveremos ampliar os esforços para romper com essa inércia ideológica que é a base da anomia social e, portanto, da inércia social e política. Assumirmos a necessária ofensiva ideológica e política contra as instituições reformistas e cooptadas das classes populares. Essa é condição necessária para que o neosujeito consumidor se converta num sujeito social ativo pela emancipação humana.
 
Então, necessitamos gritar, arrancar as mordaças da mente e do coração. Não deveremos nos envergonhar de possuirmos esperanças e de defendermos a utopia de um mundo diferente e melhor do que este em que vivemos.
 
 (Curitiba, 9 de setembro de 2009)


[1] Marcuse, Herbert (1973). A ideologia da sociedade industrial. O homem unidimensional. Rio de Janeiro, Zahar, 5ª ed. p. 85.
[2] Saunders, Frances Stonor (2008). Quem pagou a conta? A CIA na guerra fria da cultura. Rio de Janeiro, Record, pp. 32 ss
[3] Adaptado a partir das sugestões de Dardot, Pierre e Laval, Christian (2009), in La Nouvelle Raison du Monde. Essai sur la societé neoliberal. Paris, Éditions La Découverte, pp. 448 ss.
[4] Ver Carvalho, Horacio Martins (2008). A hegemonia burguesa e a "consciência feliz das massas populares". Curitiba, junho, mimeo, 17 pp.
 
[5] Meszáros, Istvan (2004). O poder da ideologia. São Paulo, Boitempo, pp. 233 ss.
[6] Ver Holloway, John (2003). Mudar o mundo sem tomar o poder. São Paulo, Viramundo, ,pp. 58 ss.
https://www.alainet.org/pt/articulo/136315
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